26.5.11

A parte da sombra

Há aqui diversos tipos de violência: a violência do acto em si (a agressão à jovem adolescente, em Lisboa), a violência do acto de filmar a agressão e, last but not least, o acto de exibi-la na Internet. Mesmo se a categoria de "perversão" tem vindo a ser erradicada dos manuais de psiquiatria, trata-se aqui de um acto genuinamente "perverso". Além de filmar a agressão, o jovem faz de todos nós cúmplices, não do acto de agressão propriamente dito, mas do "olhar" a que ele se reduz (usando a câmara) e nos tenta reduzir (sendo usados por ela).

Na era em que tudo se mostra, vê e dá a ver, não se exige aqui uma outra resposta que dê relevo à "parte da sombra" (como diria Agamben) que habita o coração humano?

É preciso voltar a ler, porventura, o que diz Freud (apesar de démodé) sobre a "pulsão agressiva" no Mal-estar na civilização. Um texto tão contemporâneo!

25.5.11

O que é ser contemporâneo?

Na "era do facebook", há quem pense que ser "contemporâneo" é estar constantemente ligado, on-line, expressando a toda a hora o "gosto" ou o "desgosto" que lhes vão na alma ou no corpo.

É estar sincronizado com o "tempo real" em que (quase) tudo é agora processado! Não permitir que nada se perca de tudo o que se passa (ainda que, na voragem do que passa depressa, quase nada fique)!

Ser contemporâneo, pensam alguns, é estar constantemente sob a luz sol ou dos holofotes!

Giorgio Agamben, o conhecido filósofo, num interessantíssimo texto justamente intitulado "O que é o contemporâneo" (in Nudez, Relógio D'Água, 2010), coloca o acento, pelo contrário, num certo desfasamento ou des-sincronização do sujeito em relação ao tempo presente: "só pode dizer-se contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue apreender nelas a parte da sombra, a sua obscuridade íntima."(p. 24).

Apreender "a parte da sombra" no que brilha, eis o contemporâneo!

14.5.11

Quem é o rato Mickey?

Há dias, Carlos Fiolhais comentava deste modo o panorama político actual:

"Por vezes a democracia não serve tanto para escolher os melhores governos, mas mais para eliminar os que se revelaram maus...Se a escolha em Portugal fosse, por hipótese, entre o actual primeiro-ministro (José Sócrates) e o rato Mickey, eu não hesitaria em votar no boneco da Disney" (Jornal Público).

Há quem pense que tudo está escrito (no acordo com a Troika) e, por isso, é indiferente votar neste ou naquele. Mas uma coisa é certa: após seis anos de descalabro, sabemos ao menos em quem não devemos votar.

Ainda que a escolha seja forçada (pois a situação não deixa muita margem de manobra), é preciso escolher. Eu já escolhi. Tal como Carlos Fiolhais, prefiro votar no rato Mickey.

Resta saber quem é o rato Mickey. Mas isso, é outra história.

28.4.11

A derrota da Vontade

O conhecido e polémico José Mourinho, treinador do Real Madrid, citou Albert Einstein para justificar aquilo que o move e que parece constituir o fórmula do sucesso: a vontade. Citar Einstein como alguém da família (o tio Alberto) diz muito sobre aquele que o cita.

«O tio Alberto disse ‘há uma força motriz mais poderosa que o vapor, a electricidade e a energia atómica: a vontade.’ E o tio Alberto não era estúpido».

No final do jogo, após a derrota, por dois zero, com o Barcelona, José Mourinho responsabilizou o árbitro pelo sucedido, revelando o seu habitual "mau feito". A sua "má" vontade?

Talvez o desejo de ganhar do Barcelona fosse mais forte que a vontade de vencer do Real Madrid. Ou talvez a vontade que anima o Barcelona tenha sido mais eficaz dentro do campo. Ou talvez...

Assistimos ontem ao triunfo ou à derrota da vontade?

14.4.11

Crise de abundância

São três. Em tempo de crise, de penúria, é muito. É uma abundância. Sobretudo porque alguns (todos eles?) são vários, uma multidão.

Quem melhor do que Nietzsche, Pessoa e Freud para diagnosticar o mal da época?

No dia 3 (Faculdade de Letras), 4 (Faculdade de Ciência Sociais e Humanas) e 5 (Fundação Calouste Gulbenkian).

Para qualquer informação sobre o Colóquio Internacional Nietzsche, Pessoa e Freud, aceder ao Blog respectivo.

2.4.11

Quem avalia os avaliadores?

Numa altura em que as empresas de rating (des)classificam a dívida da República Portuguesa para bem perto do "lixo" (é caso para dizer: do império ao lixo), tal como já acontecera com a dívida da Grécia e da Irlanda, e vai acontecer, mais cedo ou mais tarde, com outras dívidas soberanas, vem-me à memória uma frase de José Gil: quem avalia os avaliadores?

Li hoje num jornal que, perante a ameaça por parte da Comissão Europeia de responsabilizar juridicamente as empresas de notação financeira pelos erros de avaliação, estas responderam à letra, ameaçando deixar de avaliar os países periféricos, colocando dessa forma a sua dívida pública fora das rotas do investimento. Dente por dente, olho por olho. Ou melhor: se ameaças tirar-me um dente, eu ameaço tirar-te os dois olhos.

Os avaliadores não querem ser avaliados, pagar um preço pelos seus erros; não seria já tempo de começar a avaliar os avaliadores, angustiando-os da mesma forma que eles angustiam um número cada vez maior de pessoas nesta velha (e sonolenta) Europa?

Se não há forma de destronar a "retórica da avaliação" que varre o continente (é preciso avaliar isto e aquilo; no limite, tudo), ao menos que não fique nada de fora, nem sequer - e sobretudo - os sujeitos-supostos-saber-avaliar-os-outros.

Por outro lado, não deixa de ser interessante (e ter um certo efeito de verdade) que sejamos classificados perto do "lixo". Pois não é isso, afinal, o que temos andado a pregar quotidianamente com a homilia da "produtividade"? O que mais se produz por aqui - e em todo o lado onde reina o capitalismo - não é essencialmente lixo? Lixo e mais lixo. Daí que um dos grandes temas do nosso tempo seja: o que fazer com o lixo que não cessamos de produzir?

Mas quem avalia os avaliadores?

31.3.11

Haverá questão mais importante que a vida e a morte?

"Agora, para os jovens, Deus não existe em absoluto. A religião mundial é actualmente o futebol. É a única coisa capaz de congregar milhões de pessoas. Há, em Newcastle, uma expressão Maravilhosa: "Football is not a question of life or death, it's damn more important.". Isto é maravilhoso, absolutamente maravilhoso. Viver-se para o futebol, morre-se para o futebol. É a única religião do mundo." (George Steiner, Entrevista conduzida por Beata Cieszynska e José Eduardo Franco, Revista Ler, Março 2001, p. 35).

Não sei se estou inteiramente de acordo com a afirmação, até porque ainda se vive e morre demasiado em nome de Deus por esse mundo fora; de qualquer modo, se a única (a verdadeira?) religião é actualmente o futebol, estou mesmo condenado...

Há uma cena inolvidável no filme "O Segredo dos seus olhos" que nos faz sentir, por momentos, esta coisa maior que a vida e a morte que apaixona tantos por esse mundo fora. Houve um tempo em que o cinema também era uma religião...

24.3.11

Quem tem razão?

Não houve aqui um tremor de terra, mas muita coisa caiu. Caiu o governo, caíram máscaras - muitas haverão, porventura, ainda de cair - e choveram sobretudo acusações, de parte a parte: de quem é a culpa, quem são os responsáveis, quem tem afinal razão?

A neurobiologia (ver Damásio) tem insistido na importância e no papel da emoção para o (bom) funcionamento da razão. Contrariamente a grande parte da tradição filosófica (Descartes, Kant, entre muitos outros), apostada em domar, domesticar, submeter a emoção à razão, a investigação provinda da neurobiologia tem insistido sobretudo, ou igualmente, na disfunção, inoperância ou ineficácia da razão sem  o contributo, precioso, da emoção.

Tomando o exemplo da política portuguesa nos últimos anos, é fácil concluir que a emoção não tem faltado; o que tem faltado, em grande medida, é o contributo da razão.

Não há dúvida: a nossa democracia parece ter incorporado bem a lição da neurobiologia, tornando-se bastante "emotiva".

E quando a emoção se serve ainda de toda a panóplia de figuras de retórica, o seu efeito "teatral" é ainda mais eficaz.

Como entender, então, uma frase do género: "acabou o teatro!" Como efeito, ainda, do excesso de emoção; como entrada da razão em cena (na cena política); ou apenas como mais uma frase dita por um actor que acaba de entrar em palco?

Nesse caso, o teatro vai continuar. Com as consequências (bem menos teatrais) que já conhecemos.

A ver vamos.

22.3.11

geração (a)rasca

No princípio era...a canção. Dos Deolinda. Depois o fenómeno cresceu, graças, em particular, às redes sociais, como o Facebook. Nasceu a "geração à rasca". A multidão à rasca. A manifestação à rasca. Já se anunciam outros "à rasca", como o 25 de Abril: a revolução dos cravos...que murcharam. E há sobretudo cada mais textos, hipertextos, intertextos...girando em torno dessa coisa que está à rasca ou que nos deixa à rasca.
Estar ou ver-se à rasca é sentir-se em apuros, atrapalhado, em dificuldades. Mas é também, num sentido mais "popular", sentir-se já com as calças na mão, não conseguindo reter por mais tempo "o desagradável excremento que provém do interior do seu corpo", como diria Slavoj Zizek (Elogio da Intolerância, Relógio D'Água, p. 12).

Num mundo em que os velhos ideais estão em declínio, o sujeito vê-se em apuros com esse objecto abjecto que o deixa "à rasca". Se "a merda também pode servir de matéria para pensar" (permita-se dizê-lo assim cruamente, como Zizek), resta saber o que vai cada um fazer desse objecto para além de "ficar à rasca", isto é, sem saber o que fazer.

Para já, temos vindo a assistir sobretudo a um fenómeno, como diria o velho Freud, identificatório: parvos que somos.

11.3.11

Litoral

Pía Hylén é dinamarquesa, mas não vive na Dinamarca. Andou por muitas paragens: Califórnia, Paris e, agora, Lisboa: au bord du continent, où le Tage joint la mer.

Au Bord du Continent (BD-Gráfica, Lisboa, 2010) é um livro de poesia feito de palavras, cores, aguarelas, desenhos e quatro línguas: Inglês, Francês, Português e Dinamarquês. De quantas línguas é feita a nossa língua, uma língua que seja  a nossa?

Às vezes parece que uma língua se dobra na outra, como se houvesse uma passagem efémera entre ambas. À beira-mar. À beira-terra. Com a letra desenhando o litoral.

9.3.11

A (me)nina de sua mãe

Nina (Natalie Portman) foi nomeada para assumir o papel de "cisne negro". Antes de assumir este (difícil) papel, ela já tinha sido nomeada uma primeira vez por sua mãe. Nina nasceu para ser perfeita, foi nomeada para tal.

Sua mãe faz de Nina a sua (eterna) menina. Ela conta que desistiu da dança, aos 28 anos, para a dar à luz (dar à luz ganha aqui uma ressonância particular, pois se trata, verdadeiramente, de entregá-la aos holofotes, às luzes da ribalta). Mais do que desistir, a sua mãe transfere para Nina o fardo de ter de realizar um sonho interrompido.  Ela não desistiu do sonho, apenas o transferiu para a filha.Nina parece ter nascido unicamente para realizar o sonho de sua mãe.

E se Nina, em vez de carecer de um diagnóstico (é sempre arriscado diagnosticar personagens de filmes), fosse, ela sim, um diagnóstico do nosso tempo, da nova ordem vigente?

A dezanove de Março de 1974, Lacan escrevia o seguinte: "ao nome do pai substitui-se uma função que não é outra senão a de nomear para, de ser nomeado para qualquer coisa. A mãe é suficiente por si mesma para designar um tal projecto, para indicar o rasto, o caminho. O poder de nomear para institui uma ordem de ferro. Será que este nomear para não é o signo de uma degenerescência catastrófica?"

Ante o declínio da Palavra que dava nome e dizia não - abrindo ao desejo um espaço, uma clareira para respirar -, a  nova ordem de ferro faz de todos nós, de um modo ou de outro, nomeados para isto ou aquilo, sobretudo para a voragem de um gozo ilimitado, de uma pulsão de morte que nos consome, nos dilacera até às vísceras.

É isto que Nina incarna e ilustra singularmente; o resto é décor. Ou pouco mais.