"Fados", de Carlos Saura, a que hoje tive oportunidade assistir, é um filme que tem várias particularidades. Para começar, o título: é uma aposta na pluralidade impura dos "fados" em vez de na pureza do "fado", como pretenderiam alguns. Reside aqui a sua grandeza, mas também alguma da sua fragilidade, visto que não contempla, por exemplo, o fado de Coimbra.
Além do título, também o realizador é particular: um espanhol que decide dirigir um filme sobre algo genuinamente português. Isto não deixa de colocar algumas questões, por exemplo a de saber por que tem de ser um estrangeiro a permitir-nos ver, com o seu olhar, algo que é nosso, como se houvesse necessidade de um ponto de fuga exterior, situado no Outro, para que aquilo que somos venha à luz do dia ou, como é neste caso, à luz do cinema.
Terceira particularidade: aos olhos de Carlos Saura, os fados não são vozes descarnadas, mas espaços em que a voz, o som das guitarras (ou outros instrumentos) se casam harmoniosamente com a dança. Neste aspecto, ele recupera - diz quem sabe - uma das características originais do "fado".
Quarta particularidade: em vez de concentrar-se exclusivamente no "fado" tradicional cantado por portugueses e em português de Portugal, o filme de Carlos Saura aposta corajosa (e em meu entender conseguidamente) na lusofonia. É saboroso escutar os sons do fado em várias sonoridades, estilos (que vão desde a morna ao rap...) e mesmo sotaques. É impossível, hoje, não reparar como o fado contaminou outras formas musicais (no grande espaço da lusofonia) e foi igualmente contaminado por algumas delas. Carlos Saura percebeu-o bem.
Quinta particularidade: não há protagonistas neste filme (nem mesmo os fadistas mais requisitados, como Carlos do Carmo, Mariza ou Camané podem ser vistos como tal) nem história ou narrativa. Os únicos protagonistas são os "fados", isto é, a própria música; o resto são breves notas ou apontamentos.
Pode discutir-se o que falta (não só o fado de Coimbra, como inúmeros fadistas consagrados) ou o que está descolorido neste filme(como o caso de Amália Rodrigues), mas o que é certo é que, em si mesmo, ele tem uma consistência interna, uma beleza formal assinalável e uma selecção musical (ainda que discutível) que dá gosto ouvir.
Ao decidir chamar-lhe "fados", Carlos Saura, mais do que apenas fazer um filme, abriu uma porta. Espera-se que outros fados possam irromper por essa porta.
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