Outrora, uma coisa era a arte, outra coisa, a vida; mesmo se a arte se propunha "imitar" a vida.
Hoje, e desde há algum tempo, a arte confunde-se cada vez mais com a vida, de tal forma que esta, em certos casos, parece (querer) imitar a própria arte. Na medida em que "tudo vale", qualquer coisa, mesmo insignificante, pode ser olhada como objecto artístico. Desse modo, a própria "coisa", no seu real, torna-se invisível.
A não ser que um gesto desesperado, mas consequente, tire as devidas consequências de um tal estado de coisas, como foi caso recente de Gillermo Habacuc Vargas, um artista da Costa Rica que decidiu expor um cão vadio faminto numa galeria de arte. Tal como os ready-made de Marcel Duchamp, também este "cão" foi encontrado por aí, a vadiar, e elevado à dignidade da "coisa" artística por meio de um gesto que não deixou de causar escândalo.
O artista foi o escolhido para representar o seu país na "Bienal Centroamericana Honduras", correndo uma petição, on line, para que o prémio não lhe seja atribuído.
Na verdade, porém, o que fez ele? Limitou-se a "expor", a revelar, não só aquilo em que a arte se tornou (não um outro olhar sobre a vida, mas uma nova forma de cegueira) como aquilo em que nos tornamos todos nós: olhando para a vida como se ela fosse uma questão estética. É como se o poder das imagens, por mais devastadoras ou cruéis que se apresentem, nos paralisasse ou impedisse de agir. A prova é que ninguém rompeu o círculo mágico da arte para se aproximar do cão , dando-lhe comida ou água e impedindo-o de morrer. Nem sequer este poderá dizer (se um cão dissesse alguma coisa...depois de morto), como a personagem de Kafka, que morreu como um cão, pois os cães não costumam morrer em galerias de arte, a não ser que a moda pegue.
Não obstante, na "época sem vergonha" em que vivemos, este gesto "desavergonhado" não deixa de ter mérito, ao pôr a nu a coisa terrível em que arte se pode (nos pode) tornar. Desse modo, escandaloso, ele atravessou a barreira, o torpor do bem e do belo, fazendo-nos entrar num limiar de maldade essencial que nos abala, que abala tanta gente, porque é a nossa própria maldade que aí nos toca e perturba, como um cão vadio escanzelado.
27.10.07
24.10.07
A fórmula
Todos os dias sai um novo livro que promete finalmente revelar o segredo, a fórmula ou a receita do sucesso e da felicidade. A acreditar no marketing promocional, nunca foi tão fácil, como agora, ser feliz.
Porém, se todos os dias sai um novo livro é porque aquilo que prometia o velho não funcionou. Ou seja: cada novo livro que promete revelar a fórmula, é, paradoxalmente, a prova de que não há fórmula.
Por que se vendem tão bem?...
22.10.07
Como é da praxe!
Todos os anos é assim, pelo menos neste país à beira mar plantado: a entrada na universidade é acompanhada por estranhos rituais que alguém baptizou de praxe. A praxe escandaliza porque é, ou parece ser, o avesso da Universidade.
O que parece comandar o discurso universitário é um saber despojado de paixão. Contudo, é possível descortinar, sob as vestes de um tal despojamento, uma paixão que o inflama: o poder. Como já admitia Platão, saber é poder.
Deste ponto de vista, o discurso universitário é, fundamentalmente, um dispositivo de poder. Entrar na universidade é, ao mesmo tempo, acomodar-se a um tal discurso e submeter-se a um tal dispositivo.
Eis o que vem à tona, para escândalo de muitos, na altura em que a verdade fala pela bocas dos excessos que são cometidos por uns sobre os outros, os praxantes sobre os praxados, na época da praxe.
A praxe arremeda o discurso do poder, levando até ao limite e virando do avesso o seu dispositivo. Ela é, por assim dizer, o seu avesso pulsional: a caricatura ritualizada de todas as formas de domínio de uns sobre os outros, dos mais velhos sobre os mais novos (caloiros) infligindo-lhes sevícias morais (e até físicas, cada vez mais físicas) e obrigando-os a comportamentos degradantes.
Apesar de tudo, no calor do excesso se revela que o objecto que por ali circula não é todo subsumido pelo dispositivo académico e deixa restos... difíceis de engolir...
O que parece comandar o discurso universitário é um saber despojado de paixão. Contudo, é possível descortinar, sob as vestes de um tal despojamento, uma paixão que o inflama: o poder. Como já admitia Platão, saber é poder.
Deste ponto de vista, o discurso universitário é, fundamentalmente, um dispositivo de poder. Entrar na universidade é, ao mesmo tempo, acomodar-se a um tal discurso e submeter-se a um tal dispositivo.
Eis o que vem à tona, para escândalo de muitos, na altura em que a verdade fala pela bocas dos excessos que são cometidos por uns sobre os outros, os praxantes sobre os praxados, na época da praxe.
A praxe arremeda o discurso do poder, levando até ao limite e virando do avesso o seu dispositivo. Ela é, por assim dizer, o seu avesso pulsional: a caricatura ritualizada de todas as formas de domínio de uns sobre os outros, dos mais velhos sobre os mais novos (caloiros) infligindo-lhes sevícias morais (e até físicas, cada vez mais físicas) e obrigando-os a comportamentos degradantes.
Apesar de tudo, no calor do excesso se revela que o objecto que por ali circula não é todo subsumido pelo dispositivo académico e deixa restos... difíceis de engolir...
20.10.07
um grão de real
Por vezes, é preciso afastarmo-nos um pouco do objecto para que ele possa brilhar (ou ofuscar-se) a uma outra luz. Escrevi há algum tempo, neste mesmo blog, algumas considerações sobre o filme de Carlos Saura, intitulado "Fados". Nessa altura, procurei sobretudo destacar um conjunto de singularidades ( e mesmo virtualidades) que, a meu ver, o caracterizavam.
Não retiro o que disse, mas gostaria de acrescentar algo a partir do que considero, hoje, a sua "limitação". Essa limitação não reside, por exemplo, na falta de beleza. É um filme bonito, de diversos pontos de vista. Uma bem sucedida coreografia.
Porém, da dança das imagens e do sons, bem como da pose dos músicos convidados, fica-nos a impressão de um "final" - como se diz da prova dos vinhos - em que falta, por assim dizer, um grão de real.
Um grão de real não torna o objecto mais belo, mas, pelo contrário, mais rugoso, áspero, irregular ou até mesmo dissonante. É aquilo que não se encontra jamais num postal ilustrado: o que está antes ou depois da beleza e, por isso, mais perto da vida.
Não retiro o que disse, mas gostaria de acrescentar algo a partir do que considero, hoje, a sua "limitação". Essa limitação não reside, por exemplo, na falta de beleza. É um filme bonito, de diversos pontos de vista. Uma bem sucedida coreografia.
Porém, da dança das imagens e do sons, bem como da pose dos músicos convidados, fica-nos a impressão de um "final" - como se diz da prova dos vinhos - em que falta, por assim dizer, um grão de real.
Um grão de real não torna o objecto mais belo, mas, pelo contrário, mais rugoso, áspero, irregular ou até mesmo dissonante. É aquilo que não se encontra jamais num postal ilustrado: o que está antes ou depois da beleza e, por isso, mais perto da vida.
13.10.07
Maturidade
A civilização inventou um disparate que se chama "maturidade". Ser maduro significa, essencialmente, não ter comportamentos de criança e guiar-se, única e exclusivamente, pela luz da razão. Acontece que é nos momentos em que esta luz se apaga e voltamos a ser crianças que é possível "tropeçar na felicidade".
Foi, porventura, com este raciocínio que "os idiotas"(idioterne) do filme de Lars Von Trier (1998) se dedicaram a redescobrir uma série de comportamentos próprios de crianças ou deficientes (babando-se, por exemplo, ou passando em público por verdadeiros deficientes mentais) a fim de alcançar uma naturalidade ou genuinidade que a civilização (burguesa) teria "recalcado".
De um certo ponto de vista, este filme é paradigmático de toda uma corrente de ideias que alimenta a "cultura" actual: é preciso, por todos os meios, travar o curso do tempo, do amadurecimento, e recuperar a infância (ou juventude) perdidas.
Porém, tal como mostra o filme de Lars Von Trier, este processo de "idiotização" ou infantilização tem um limite (real) e acaba por revelar, de um modo ou de outro, a sua artificialidade: a busca de pureza e naturalidade revela-se, no fim, como pura fantasia. Excepto para aqueles que a vivem a céu aberto, tal como é representado por Karen, uma das personagens.
Foi, porventura, com este raciocínio que "os idiotas"(idioterne) do filme de Lars Von Trier (1998) se dedicaram a redescobrir uma série de comportamentos próprios de crianças ou deficientes (babando-se, por exemplo, ou passando em público por verdadeiros deficientes mentais) a fim de alcançar uma naturalidade ou genuinidade que a civilização (burguesa) teria "recalcado".
De um certo ponto de vista, este filme é paradigmático de toda uma corrente de ideias que alimenta a "cultura" actual: é preciso, por todos os meios, travar o curso do tempo, do amadurecimento, e recuperar a infância (ou juventude) perdidas.
Porém, tal como mostra o filme de Lars Von Trier, este processo de "idiotização" ou infantilização tem um limite (real) e acaba por revelar, de um modo ou de outro, a sua artificialidade: a busca de pureza e naturalidade revela-se, no fim, como pura fantasia. Excepto para aqueles que a vivem a céu aberto, tal como é representado por Karen, uma das personagens.
9.10.07
Paradoxo
Num certo sentido, nunca estivemos tão dependentes das contrariedades do real como agora: desde as alterações climáticas às flutuações do petróleo ou das taxas de juro, que condicionam a nossa vida até ao mais ínfimo do quotidiano, tudo parece enovelar-se numa teia de circunstâncias que nos tornam a vida cada vez mais difícil.
Ao mesmo tempo, porém, nunca houve tanta literatura, apologia, discurso ... apelando à libertação interior. Estão neste caso, por exemplo, os livros que enchem cada vez mais as livrarias, reais ou virtuais, os cursos ou seminários, os filmes...sobre auto-ajuda (nome genérico e algo vago para uma série de coisas distintas, uma espécie de salada onde cabe quase tudo).
Será que estamos perante uma "revolução interior" (uma "nova era" de espiritualidade) ou tão só perante uma nova forma de consolação, compensação, alienação (profundamente narcísica) para a nossa cada vez maior dificuldade, impossibilidade de agir no real?
8.10.07
Ainda a (des)propósito do último filme de David. Lynch
O que este filme nos dá a ver parece inteiramente descabido, sem lógica ou sentido algum.
Se há, apesar de tudo, uma lógica do sentido, com diria Deleuze, ela é a da própria vida ( e não apenas do sonho ou do cinema).
Com efeito, pensamos que a vida caminha linearmente, em linha recta por assim dizer, em que os tempos sucedem uns aos outros, numa acumulação progressiva, e os espaços se harmonizam por contiguidade. Segundo esta lógica, vamos ganhando cada vez mais (experiência, maturidade, juízo...) e aproximando-nos cada vez mais (da verdade, do belo ou do bom).
Porém, tudo o que ganhamos de um lado, perdemos do outro. A vida anda às voltas, confundindo o tempo e o espaço no mesmo vórtice. Quando pensamos ter aprendido a lição, o dia do exame já passou.
Parafraseando Freud (O Humor), a vida é apenas "um bom tema para uma piada". Mesmo se houve quem não tivesse achado muita piada ao filme de Lynch... ou haja quem não ache grande piada ao próprio Freud.
Se há, apesar de tudo, uma lógica do sentido, com diria Deleuze, ela é a da própria vida ( e não apenas do sonho ou do cinema).
Com efeito, pensamos que a vida caminha linearmente, em linha recta por assim dizer, em que os tempos sucedem uns aos outros, numa acumulação progressiva, e os espaços se harmonizam por contiguidade. Segundo esta lógica, vamos ganhando cada vez mais (experiência, maturidade, juízo...) e aproximando-nos cada vez mais (da verdade, do belo ou do bom).
Porém, tudo o que ganhamos de um lado, perdemos do outro. A vida anda às voltas, confundindo o tempo e o espaço no mesmo vórtice. Quando pensamos ter aprendido a lição, o dia do exame já passou.
Parafraseando Freud (O Humor), a vida é apenas "um bom tema para uma piada". Mesmo se houve quem não tivesse achado muita piada ao filme de Lynch... ou haja quem não ache grande piada ao próprio Freud.
5.10.07
Fados
"Fados", de Carlos Saura, a que hoje tive oportunidade assistir, é um filme que tem várias particularidades. Para começar, o título: é uma aposta na pluralidade impura dos "fados" em vez de na pureza do "fado", como pretenderiam alguns. Reside aqui a sua grandeza, mas também alguma da sua fragilidade, visto que não contempla, por exemplo, o fado de Coimbra.
Além do título, também o realizador é particular: um espanhol que decide dirigir um filme sobre algo genuinamente português. Isto não deixa de colocar algumas questões, por exemplo a de saber por que tem de ser um estrangeiro a permitir-nos ver, com o seu olhar, algo que é nosso, como se houvesse necessidade de um ponto de fuga exterior, situado no Outro, para que aquilo que somos venha à luz do dia ou, como é neste caso, à luz do cinema.
Terceira particularidade: aos olhos de Carlos Saura, os fados não são vozes descarnadas, mas espaços em que a voz, o som das guitarras (ou outros instrumentos) se casam harmoniosamente com a dança. Neste aspecto, ele recupera - diz quem sabe - uma das características originais do "fado".
Quarta particularidade: em vez de concentrar-se exclusivamente no "fado" tradicional cantado por portugueses e em português de Portugal, o filme de Carlos Saura aposta corajosa (e em meu entender conseguidamente) na lusofonia. É saboroso escutar os sons do fado em várias sonoridades, estilos (que vão desde a morna ao rap...) e mesmo sotaques. É impossível, hoje, não reparar como o fado contaminou outras formas musicais (no grande espaço da lusofonia) e foi igualmente contaminado por algumas delas. Carlos Saura percebeu-o bem.
Quinta particularidade: não há protagonistas neste filme (nem mesmo os fadistas mais requisitados, como Carlos do Carmo, Mariza ou Camané podem ser vistos como tal) nem história ou narrativa. Os únicos protagonistas são os "fados", isto é, a própria música; o resto são breves notas ou apontamentos.
Pode discutir-se o que falta (não só o fado de Coimbra, como inúmeros fadistas consagrados) ou o que está descolorido neste filme(como o caso de Amália Rodrigues), mas o que é certo é que, em si mesmo, ele tem uma consistência interna, uma beleza formal assinalável e uma selecção musical (ainda que discutível) que dá gosto ouvir.
Ao decidir chamar-lhe "fados", Carlos Saura, mais do que apenas fazer um filme, abriu uma porta. Espera-se que outros fados possam irromper por essa porta.
Além do título, também o realizador é particular: um espanhol que decide dirigir um filme sobre algo genuinamente português. Isto não deixa de colocar algumas questões, por exemplo a de saber por que tem de ser um estrangeiro a permitir-nos ver, com o seu olhar, algo que é nosso, como se houvesse necessidade de um ponto de fuga exterior, situado no Outro, para que aquilo que somos venha à luz do dia ou, como é neste caso, à luz do cinema.
Terceira particularidade: aos olhos de Carlos Saura, os fados não são vozes descarnadas, mas espaços em que a voz, o som das guitarras (ou outros instrumentos) se casam harmoniosamente com a dança. Neste aspecto, ele recupera - diz quem sabe - uma das características originais do "fado".
Quarta particularidade: em vez de concentrar-se exclusivamente no "fado" tradicional cantado por portugueses e em português de Portugal, o filme de Carlos Saura aposta corajosa (e em meu entender conseguidamente) na lusofonia. É saboroso escutar os sons do fado em várias sonoridades, estilos (que vão desde a morna ao rap...) e mesmo sotaques. É impossível, hoje, não reparar como o fado contaminou outras formas musicais (no grande espaço da lusofonia) e foi igualmente contaminado por algumas delas. Carlos Saura percebeu-o bem.
Quinta particularidade: não há protagonistas neste filme (nem mesmo os fadistas mais requisitados, como Carlos do Carmo, Mariza ou Camané podem ser vistos como tal) nem história ou narrativa. Os únicos protagonistas são os "fados", isto é, a própria música; o resto são breves notas ou apontamentos.
Pode discutir-se o que falta (não só o fado de Coimbra, como inúmeros fadistas consagrados) ou o que está descolorido neste filme(como o caso de Amália Rodrigues), mas o que é certo é que, em si mesmo, ele tem uma consistência interna, uma beleza formal assinalável e uma selecção musical (ainda que discutível) que dá gosto ouvir.
Ao decidir chamar-lhe "fados", Carlos Saura, mais do que apenas fazer um filme, abriu uma porta. Espera-se que outros fados possam irromper por essa porta.
1.10.07
Descascando a cebola da culpa
A ideia não é nova: gozamos mal porque sentimos culpa. Daí que haja uma tendência, cada vez mais acentuada, de desculpabilização. Não se trata exactamente de pedir desculpa (pois quem pede desculpa ainda se sente culpado) ou de expiá-la, mas de apagar, rasurar, fazer desaparecer a culpa. No limite, o sonho é poder agir sem culpa. Fazem-se terapias para dormir melhor e, de preferência, sem culpa.
Porém, não é certo que a culpa seja um obstáculo ao gozo, antes uma das suas formas mais sofisticadas. Talvez seja este um dos "paradoxos do cristianismo", como diria Chesterton.
Em vez de ter criado um obstáculo, o cristianismo teria inventado um novo modo de gozar (Cf. ZizeK, A Marioneta e o Anão) para além do tédio da existência pagã.
Por outro lado, há uma diferença entre apagar a culpa (como se pretende cada vez mais) e assumi-la: neste caso, há um sujeito que responde (mesmo que inconscientemente) por um acto. E como o inconsciente não conhece o tempo (cronológico), há coisas que insistem, na nossa vida, até serem integralmente, subjectivamente assumidas.
Que o diga Günter Grass, o aclamado escritor alemão , que decidiu quebrar o silêncio (sobre a sua participação, no final da segunda guerra mundial, nas Waffen-SS, uma força militar especial do Partido Nazi, condenada nos tribunais de Nuremberga) após sessenta anos (Cf. Descascando a Cebola - Autobiografia 1939-1959).
Não é a culpa uma das provas de que somos humanos?
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