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Hoje, e desde há algum tempo, a arte confunde-se cada vez mais com a vida, de tal forma que esta, em certos casos, parece (querer) imitar a própria arte. Na medida em que "tudo vale", qualquer coisa, mesmo insignificante, pode ser olhada como objecto artístico. Desse modo, a própria "coisa", no seu real, torna-se invisível.
A não ser que um gesto desesperado, mas consequente, tire as devidas consequências de um tal estado de coisas, como foi caso recente de Gillermo Habacuc Vargas, um artista da Costa Rica que decidiu expor um cão vadio faminto numa galeria de arte. Tal como os ready-made de Marcel Duchamp, também este "cão" foi encontrado por aí, a vadiar, e elevado à dignidade da "coisa" artística por meio de um gesto que não deixou de causar escândalo.
O artista foi o escolhido para representar o seu país na "Bienal Centroamericana Honduras", correndo uma petição, on line, para que o prémio não lhe seja atribuído.
Na verdade, porém, o que fez ele? Limitou-se a "expor", a revelar, não só aquilo em que a arte se tornou (não um outro olhar sobre a vida, mas uma nova forma de cegueira) como aquilo em que nos tornamos todos nós: olhando para a vida como se ela fosse uma questão estética. É como se o poder das imagens, por mais devastadoras ou cruéis que se apresentem, nos paralisasse ou impedisse de agir. A prova é que ninguém rompeu o círculo mágico da arte para se aproximar do cão , dando-lhe comida ou água e impedindo-o de morrer. Nem sequer este poderá dizer (se um cão dissesse alguma coisa...depois de morto), como a personagem de Kafka, que morreu como um cão, pois os cães não costumam morrer em galerias de arte, a não ser que a moda pegue.
Não obstante, na "época sem vergonha" em que vivemos, este gesto "desavergonhado" não deixa de ter mérito, ao pôr a nu a coisa terrível em que arte se pode (nos pode) tornar. Desse modo, escandaloso, ele atravessou a barreira, o torpor do bem e do belo, fazendo-nos entrar num limiar de maldade essencial que nos abala, que abala tanta gente, porque é a nossa própria maldade que aí nos toca e perturba, como um cão vadio escanzelado.