30.7.07

A vida dos Outros


E se, a meio do caminho de uma vida, parafraseando Dante, um homem, com a mesma paixão com que tinha seguido numa determinada via, arrepiasse caminho, seguindo outra? Eis o que acontece, precisamente, em A vida dos Outros (Das Leben der Anderen), um filme poderoso, extraordinário, verdadeiramente imperdível, de Florian Henckel von Donnersmarck, em exibição no velho e negligenciado Quarteto. Nem a avaria do ar condicionado, em tempo de canícula, foi suficiente para abalar a emoção e a felicidade (contrariamente ao pesadelo gratuito do último filme de Quentin Tarantino - curiosamente celebrado por alguns "críticos" de cinema como uma obra prima) que me arrebatou até às lágrimas. Aplica-se aqui o que Oscar Wilde escrevia no século XIX: "num século de grande fealdade em que a razão prevalece, as artes nada extraem da vida, mas copiam-se umas às outras". Enquanto o "pastiche" de Tarantino é um sufoco claustrofóbico de auto e hetero-citação, onde não saímos do cinema para a vida, no filme de Florian Henckel é a própria vida ( a dos outros e a nossa) que irrompe na tela e transforma tudo e todos.

O filme passa-se em 1984, na antiga Alemanha de Leste, cinco antes antes da Glasnot e da queda do Muro de Berlim, onde a população é mantida debaixo de controlo pela Stasi, a polícia secreta alemã. A Stasi tem por missão saber tudo sobre a vida de todas as pessoas, através de uma vasta cadeia de informadores/denunciadores. O filme acompanha a gradual desilusão do Capitão Gerd Wiesler, um oficial altamente credenciado da Stasi, cuja missão é espiar um famoso escritor, George Dreyman, e a sua esposa, a actriz Christa-Maria Sieland.


"Saber tudo" é uma versão do sonho hegeliano do
saber absoluto. Só que, desta vez, o sonho é realizado (num lugar determinado e por via de um regime político e da sua rigorosa e eficaz polícia secreta) e transforma-se em em pesadelo. Durante o filme, assistimos a uma espécie de revolução subjectiva em Gerd Wiesler que o transforma completamente até ao ponto de proteger, da polícia secreta, aquele em quem tinha investido tantas horas de observação: o escritor George Dreymer.

Em português, temos uma expressão curiosa: "tudo e mais alguma coisa". Poderíamos aplicar esta expressão ao que acontece a Gerd Wiesler: na ânsia de "saber tudo", ele depara-se, inesperadamente, com "mais alguma coisa", ficando de tal forma abalado interiormente que, a partir daí, já não é mais o mesmo, ainda que, formalmente, continue a realizar os mesmo actos, mas com um sentido diametralmente oposto.


O risco de um acto verdadeiramente ético, é que ele pode implicar a perda de tudo. É o que se poderia chamar
uma escolha forçada. Se o filme nos toca profundamente, é porque cada um de nós, num momento ou outro da vida, é confrontado com essa escolha. Há alguma coisa de Antígona no gesto de Wiesler: ele faz o que julga estar certo sem temer as consequências.

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