"Agora, para os jovens, Deus não existe em absoluto. A religião mundial é actualmente o futebol. É a única coisa capaz de congregar milhões de pessoas. Há, em Newcastle, uma expressão Maravilhosa: "Football is not a question of life or death, it's damn more important.". Isto é maravilhoso, absolutamente maravilhoso. Viver-se para o futebol, morre-se para o futebol. É a única religião do mundo." (George Steiner, Entrevista conduzida por Beata Cieszynska e José Eduardo Franco, Revista Ler, Março 2001, p. 35).
Não sei se estou inteiramente de acordo com a afirmação, até porque ainda se vive e morre demasiado em nome de Deus por esse mundo fora; de qualquer modo, se a única (a verdadeira?) religião é actualmente o futebol, estou mesmo condenado...
Há uma cena inolvidável no filme "O Segredo dos seus olhos" que nos faz sentir, por momentos, esta coisa maior que a vida e a morte que apaixona tantos por esse mundo fora. Houve um tempo em que o cinema também era uma religião...
31.3.11
24.3.11
Quem tem razão?
Não houve aqui um tremor de terra, mas muita coisa caiu. Caiu o governo, caíram máscaras - muitas haverão, porventura, ainda de cair - e choveram sobretudo acusações, de parte a parte: de quem é a culpa, quem são os responsáveis, quem tem afinal razão?
A neurobiologia (ver Damásio) tem insistido na importância e no papel da emoção para o (bom) funcionamento da razão. Contrariamente a grande parte da tradição filosófica (Descartes, Kant, entre muitos outros), apostada em domar, domesticar, submeter a emoção à razão, a investigação provinda da neurobiologia tem insistido sobretudo, ou igualmente, na disfunção, inoperância ou ineficácia da razão sem o contributo, precioso, da emoção.
Tomando o exemplo da política portuguesa nos últimos anos, é fácil concluir que a emoção não tem faltado; o que tem faltado, em grande medida, é o contributo da razão.
Não há dúvida: a nossa democracia parece ter incorporado bem a lição da neurobiologia, tornando-se bastante "emotiva".
E quando a emoção se serve ainda de toda a panóplia de figuras de retórica, o seu efeito "teatral" é ainda mais eficaz.
Como entender, então, uma frase do género: "acabou o teatro!" Como efeito, ainda, do excesso de emoção; como entrada da razão em cena (na cena política); ou apenas como mais uma frase dita por um actor que acaba de entrar em palco?
Nesse caso, o teatro vai continuar. Com as consequências (bem menos teatrais) que já conhecemos.
A ver vamos.
A neurobiologia (ver Damásio) tem insistido na importância e no papel da emoção para o (bom) funcionamento da razão. Contrariamente a grande parte da tradição filosófica (Descartes, Kant, entre muitos outros), apostada em domar, domesticar, submeter a emoção à razão, a investigação provinda da neurobiologia tem insistido sobretudo, ou igualmente, na disfunção, inoperância ou ineficácia da razão sem o contributo, precioso, da emoção.
Tomando o exemplo da política portuguesa nos últimos anos, é fácil concluir que a emoção não tem faltado; o que tem faltado, em grande medida, é o contributo da razão.
Não há dúvida: a nossa democracia parece ter incorporado bem a lição da neurobiologia, tornando-se bastante "emotiva".
E quando a emoção se serve ainda de toda a panóplia de figuras de retórica, o seu efeito "teatral" é ainda mais eficaz.
Como entender, então, uma frase do género: "acabou o teatro!" Como efeito, ainda, do excesso de emoção; como entrada da razão em cena (na cena política); ou apenas como mais uma frase dita por um actor que acaba de entrar em palco?
Nesse caso, o teatro vai continuar. Com as consequências (bem menos teatrais) que já conhecemos.
A ver vamos.
22.3.11
geração (a)rasca
No princípio era...a canção. Dos Deolinda. Depois o fenómeno cresceu, graças, em particular, às redes sociais, como o Facebook. Nasceu a "geração à rasca". A multidão à rasca. A manifestação à rasca. Já se anunciam outros "à rasca", como o 25 de Abril: a revolução dos cravos...que murcharam. E há sobretudo cada mais textos, hipertextos, intertextos...girando em torno dessa coisa que está à rasca ou que nos deixa à rasca.
Estar ou ver-se à rasca é sentir-se em apuros, atrapalhado, em dificuldades. Mas é também, num sentido mais "popular", sentir-se já com as calças na mão, não conseguindo reter por mais tempo "o desagradável excremento que provém do interior do seu corpo", como diria Slavoj Zizek (Elogio da Intolerância, Relógio D'Água, p. 12).
Num mundo em que os velhos ideais estão em declínio, o sujeito vê-se em apuros com esse objecto abjecto que o deixa "à rasca". Se "a merda também pode servir de matéria para pensar" (permita-se dizê-lo assim cruamente, como Zizek), resta saber o que vai cada um fazer desse objecto para além de "ficar à rasca", isto é, sem saber o que fazer.
Para já, temos vindo a assistir sobretudo a um fenómeno, como diria o velho Freud, identificatório: parvos que somos.
Estar ou ver-se à rasca é sentir-se em apuros, atrapalhado, em dificuldades. Mas é também, num sentido mais "popular", sentir-se já com as calças na mão, não conseguindo reter por mais tempo "o desagradável excremento que provém do interior do seu corpo", como diria Slavoj Zizek (Elogio da Intolerância, Relógio D'Água, p. 12).
Num mundo em que os velhos ideais estão em declínio, o sujeito vê-se em apuros com esse objecto abjecto que o deixa "à rasca". Se "a merda também pode servir de matéria para pensar" (permita-se dizê-lo assim cruamente, como Zizek), resta saber o que vai cada um fazer desse objecto para além de "ficar à rasca", isto é, sem saber o que fazer.
Para já, temos vindo a assistir sobretudo a um fenómeno, como diria o velho Freud, identificatório: parvos que somos.
11.3.11
Litoral
Pía Hylén é dinamarquesa, mas não vive na Dinamarca. Andou por muitas paragens: Califórnia, Paris e, agora, Lisboa: au bord du continent, où le Tage joint la mer.
Au Bord du Continent (BD-Gráfica, Lisboa, 2010) é um livro de poesia feito de palavras, cores, aguarelas, desenhos e quatro línguas: Inglês, Francês, Português e Dinamarquês. De quantas línguas é feita a nossa língua, uma língua que seja a nossa?
Às vezes parece que uma língua se dobra na outra, como se houvesse uma passagem efémera entre ambas. À beira-mar. À beira-terra. Com a letra desenhando o litoral.
Au Bord du Continent (BD-Gráfica, Lisboa, 2010) é um livro de poesia feito de palavras, cores, aguarelas, desenhos e quatro línguas: Inglês, Francês, Português e Dinamarquês. De quantas línguas é feita a nossa língua, uma língua que seja a nossa?
Às vezes parece que uma língua se dobra na outra, como se houvesse uma passagem efémera entre ambas. À beira-mar. À beira-terra. Com a letra desenhando o litoral.
9.3.11
A (me)nina de sua mãe
Nina (Natalie Portman) foi nomeada para assumir o papel de "cisne negro". Antes de assumir este (difícil) papel, ela já tinha sido nomeada uma primeira vez por sua mãe. Nina nasceu para ser perfeita, foi nomeada para tal.
Sua mãe faz de Nina a sua (eterna) menina. Ela conta que desistiu da dança, aos 28 anos, para a dar à luz (dar à luz ganha aqui uma ressonância particular, pois se trata, verdadeiramente, de entregá-la aos holofotes, às luzes da ribalta). Mais do que desistir, a sua mãe transfere para Nina o fardo de ter de realizar um sonho interrompido. Ela não desistiu do sonho, apenas o transferiu para a filha.Nina parece ter nascido unicamente para realizar o sonho de sua mãe.
E se Nina, em vez de carecer de um diagnóstico (é sempre arriscado diagnosticar personagens de filmes), fosse, ela sim, um diagnóstico do nosso tempo, da nova ordem vigente?
A dezanove de Março de 1974, Lacan escrevia o seguinte: "ao nome do pai substitui-se uma função que não é outra senão a de nomear para, de ser nomeado para qualquer coisa. A mãe é suficiente por si mesma para designar um tal projecto, para indicar o rasto, o caminho. O poder de nomear para institui uma ordem de ferro. Será que este nomear para não é o signo de uma degenerescência catastrófica?"
Ante o declínio da Palavra que dava nome e dizia não - abrindo ao desejo um espaço, uma clareira para respirar -, a nova ordem de ferro faz de todos nós, de um modo ou de outro, nomeados para isto ou aquilo, sobretudo para a voragem de um gozo ilimitado, de uma pulsão de morte que nos consome, nos dilacera até às vísceras.
É isto que Nina incarna e ilustra singularmente; o resto é décor. Ou pouco mais.
Sua mãe faz de Nina a sua (eterna) menina. Ela conta que desistiu da dança, aos 28 anos, para a dar à luz (dar à luz ganha aqui uma ressonância particular, pois se trata, verdadeiramente, de entregá-la aos holofotes, às luzes da ribalta). Mais do que desistir, a sua mãe transfere para Nina o fardo de ter de realizar um sonho interrompido. Ela não desistiu do sonho, apenas o transferiu para a filha.Nina parece ter nascido unicamente para realizar o sonho de sua mãe.
E se Nina, em vez de carecer de um diagnóstico (é sempre arriscado diagnosticar personagens de filmes), fosse, ela sim, um diagnóstico do nosso tempo, da nova ordem vigente?
A dezanove de Março de 1974, Lacan escrevia o seguinte: "ao nome do pai substitui-se uma função que não é outra senão a de nomear para, de ser nomeado para qualquer coisa. A mãe é suficiente por si mesma para designar um tal projecto, para indicar o rasto, o caminho. O poder de nomear para institui uma ordem de ferro. Será que este nomear para não é o signo de uma degenerescência catastrófica?"
Ante o declínio da Palavra que dava nome e dizia não - abrindo ao desejo um espaço, uma clareira para respirar -, a nova ordem de ferro faz de todos nós, de um modo ou de outro, nomeados para isto ou aquilo, sobretudo para a voragem de um gozo ilimitado, de uma pulsão de morte que nos consome, nos dilacera até às vísceras.
É isto que Nina incarna e ilustra singularmente; o resto é décor. Ou pouco mais.
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