26.10.10

O instrumento conta

Numa entrevista concedida ao Jornal de Letras, Artes e Ideias acerca do seu último livro - Uma viagem à Índia -, o escritor Gonçalo M. Tavares dava a seguinte imagem: Se alguém sai à rua com um martelo na mão o mundo torna-se em algo de martelável.

O instrumento conta: ele lança na sombra tudo aquilo que está fora do seu raio luminoso.

Se o instrumento se chama, por exemplo, "Padrões de Desempenho" (segundo o último Despacho ministerial sobre a avaliação), o mundo transforma-se em algo de "padronizável": com muitos "indicadores" e "descritores", é certo, mas sem nenhuma atenção ao que é imprevisível, imponderável.

Desprovida da singularidade, a roda do moinho - pedra redonda e pesada - torna-se mais leve e gira mais depressa, uma vez que lhe falta grão.

Mas de que serve a uma roda rodar se lhe falta grão?

25.10.10

Uma era cínica

O humor que se faz tende a resvalar cada vez mais para o "cinismo"; veja-se, por exemplo, o "Tubo de Ensaio" (Bruno Nogueira, TSF) ou aquele programa de que não lembro o nome e em que o mesmo Bruno Nogueira teve um diálogo deveras edificante com o seu entrevistador (?) Rui Unas (cito de cor, pois não me lembro dos termos exactos):
E se eu te comesse agora?

Perante a anuência do seu interlocutor, os dois (Nogueira e Unas) parodiam um acto de sodomia ao vivo. No fim, Rui Unas remata do seguinte modo:
- Obrigado por teres sido meigo.

Longe vai O dito espirituoso nas suas relações com o inconsciente (como escrevia Freud há pouco mais de um século). O humor é, tradicionalmente, uma curva, um passar ao lado: o caminho mais longo entre dois pontos. Tal como defendiam os antigos "cínicos" - mas sem a convicção destes - o humor que se faz hoje em dia é cada vez mais objectiva e abjectivamente directo: "o caminho mais curto".

Há algum tempo atrás, alguém perguntava (creio que ao Bruno Nogueira); há limites para o humor? Ao que este respondeu: Não!

Nem sequer o "bom gosto" é já um limite para o humor; basta ouvir algumas emissões do Tubo de Ensaio.

Definitivamente, a ordem simbólica está a mudar. E o (nosso) humor também.

14.10.10

Amizade líquida

Costuma dizer-se que uma imagem diz mais do que mil palavras. Talvez por isso, à deflação da palavra tem correspondido uma crescente inflação de imagens; veja-se, por exemplo, a quantidade extraordinária de fotografias, de cenas da vida íntima ou de filmes caseiros que povoam o facebook ou Youtube...


Há palavras, ainda assim, que dizem mais acerca do estado do mundo do que qualquer imagem consegue mostrar. É o caso, por exemplo, do termo "desamigar" (unfriend). Aristóteles, que dedicou inúmeras páginas ao tema da amizade, teria agora - se fosse vivo - de reescrever a sua Ética a Nicómaco para que nela coubesse a crescente (des)amizade que assola o mundo...virtual.

Como diria o poeta, o mundo pula e avança.

Se tudo derrete - e não apenas o gelo dos polos - por que não haveria a amizade também de derreter?

3.10.10

Filme do Desassossego

Acabei de regressar, há algum tempo, do CCB. O auditório foi pequeno - literalmente - para tantas pessoas que não queriam perder o último filme de João Botelho, baseado na obra do semi-heterónimo de Fernando Pessoa, Bernardo Soares. Não houve Coca-Cola nem Pipocas (como pedia o realizador), mas um silêncio atento do princípio ao fim.

Confesso que eu amo o livro de Bernardo Soares desde que o li pela primeira vez, já lá vão mais de vinte anos. Ao longo das inúmeras releituras que fiz deste livro, ele sempre teve a capacidade de me surpreender. Por isso, ia com poucas expectativas; foi o que disse, aliás, a quem me acompanhava.

Mas talvez não fosse bem assim - e - como se diz na gíria psicanalítica - tudo não passasse de uma "denegação", isto é, um modo de afirmar, negando. Na verdade, eu tinha muitas expectativas, demasiadas...

Por isso, talvez por isso, não partilho das várias opiniões (unânimes) expressas nos inúmeras comentários que tive ocasião de ouvir e ler entretanto sobre o filme de João Botelho: magnífico, esplendoroso, sublime...

Há sequências magistrais, sem dúvida; fragmentos que valem por si mesmos; desempenhos irrepreensíveis; mas há também inúmeros trechos desenquadrados, inconsequentes e, sobretudo, assentes num mero virtuosismo (exibicionismo?) estético. É um filme demasiado saturado de palavras  (por opção deliberada do realizador) e, igualmente, de imagens; mas faltam, para mim, aquelas "intercalações de luz e sombra" (não sei como dizê-lo melhor senão recorrendo a esta frase de Bernardo Soares) que fazem tinir em cada palavra a campainha do silêncio e em cada imagem o brilho do que fica na sombra.

O livro do desassossego está repleto de vazios, cheio de pequenos nadas, é tecido de intervalos, de meios tons; eu esperava, talvez, que este filme, mais do que reproduzir muitas falas do livro, pondo-as na boca, ora de um, ora de outro personagem, quase sempre do próprio Bernardo Soares (Cláudio da Silva), pudesse "mostrar" um pouco desses intervalos e meios tons. Mostrar o que a palavra roça, contorna, mas não diz.

Talvez eu tivesse demasiadas (infundadas?) expectativas. Admito.