Ser sério, dizia Lacan no Seminário XX, é estabelecer a série.
Clara Pinto Correia, que tinha andado até agora a brincar aos cientistas , decidiu finalmente "publicar" uma coisa séria: uma série de fotografias em que se expõe, dando-se a ver ao mundo no instante de ser vir. Pela beleza da coisa, diz algures. Com muita naturalidade. Fazendo-se olhar pela câmara fotográfica do marido numa série de "Sexpressions".
Lacan, que costumava brincar com coisas sérias, chegou um dia a inventar um termo (poubellication) para caracterizar aquilo que ele próprio dizia fazer às vezes: publicar. Publicar é enviar coisas para o lixo (poubelle).
Na era da Internet, há cada vez mais "poubellicações": para graça de uns e desgraça de outros. Para gozo de muitos.
Eu próprio não resisto a "poubellicar" de vez em quando. Só não fui ainda tão ousado, tão sério...
28.1.10
19.1.10
Avaliar mata
Diz-se que o Inverno tem sido bastante rigoroso por essa Europa fora. E é verdade. Mas há um furacão ainda mais tempestuoso que, desde há alguns anos, varre com impetuosidade o velho continente: chama-se "avaliação".
Pretende submeter-se tudo à avaliação, avaliar tudo. O propósito tem ares de seriedade. Quem pode, em boa fé, contestar a exigência de avaliar teorias e práticas?
A avaliação é uma coisa boa. Até os professores, quando saíram à rua (mais de cem mil por duas vezes consecutivas), se apressaram a dizer que não estava em causa a avaliação, pois eles queriam ser avaliados, mas apenas aquele modelo de avaliação.
Ainda estamos no começo. A coisa vai aquecer. Como outras "pandemias" que agora estão na moda, a avaliação vai expandir-se rapidamente, matando toda e qualquer espécie de "singularidade", de criatividade, em nome do rigor, da transparência e outros nomes sonantes, em tudo quanto é actividade humana.
Por isso, é bom que se comece já a reflectir se querer avaliar tudo não significa tudo querer matar. Na verdade, como diz o cartaz do Fórum que vai ter lugar em Paris no próximo dia 7 de Fevereiro de 2010, jogando com o poder da homofonia, "avaliar tudo mata (évaluer tue)".
Pretende submeter-se tudo à avaliação, avaliar tudo. O propósito tem ares de seriedade. Quem pode, em boa fé, contestar a exigência de avaliar teorias e práticas?
A avaliação é uma coisa boa. Até os professores, quando saíram à rua (mais de cem mil por duas vezes consecutivas), se apressaram a dizer que não estava em causa a avaliação, pois eles queriam ser avaliados, mas apenas aquele modelo de avaliação.
Ainda estamos no começo. A coisa vai aquecer. Como outras "pandemias" que agora estão na moda, a avaliação vai expandir-se rapidamente, matando toda e qualquer espécie de "singularidade", de criatividade, em nome do rigor, da transparência e outros nomes sonantes, em tudo quanto é actividade humana.
Por isso, é bom que se comece já a reflectir se querer avaliar tudo não significa tudo querer matar. Na verdade, como diz o cartaz do Fórum que vai ter lugar em Paris no próximo dia 7 de Fevereiro de 2010, jogando com o poder da homofonia, "avaliar tudo mata (évaluer tue)".
Uma causa perdida?
É uma "guerra" que tem quase um século. Em 1926, Freud escreveu um artigo intitulado: "A questão da análise leiga". Leigo significava, neste contexto, "não médico".
O artigo de Freud tinha como causa imediata a acusação de charlatanismo dirigida pelas autoridades vienenses a Theodor Reik pelo facto de este exercer a psicanálise não sendo médico. Freud propõe-se mostrar, neste artigo, que o facto de ser médico não garante, só por si, uma especial capacidade para lidar com a causa analítica, carecendo esta de uma "formação" peculiar. É nesse sentido que podemos afirmar que o desejo de Freud se revela como sendo fundamentalmente laico.
Esta via da "laicidade" da psicanálise foi prosseguida, mais tarde, por Lacan, ao não discriminar entre as diversas proveniências dos membros da sua Escola (sendo indiferente, à partida, se estes eram médicos, psicólogos ou outra coisa qualquer), ao mesmo tempo que exigia um rigor apurado e um desejo decidido por parte de cada um deles. Lacan chegou mesmo a dizer, a certa altura, que o psicanalista só se autoriza por si mesmo, ou seja, que não importa a formação que ele traz de base, mas o desejo que desponta no processo de uma análise, a qual, sendo levada até ao fim, se pode revelar didáctica.
Em 2003, quando a psicanálise, juntamente com as psicoterapias de inspiração psicanalítica, sofreram a primeira onda de choque de um "sismo" que teve o seu epicentro numa simples emenda legislativa (a "Emenda Accoyer), sendo mais tarde seguida por diversas réplicas (Relatório INSERM, Livro Negro da Psicanálise...), houve quem se lembrasse do artigo de Freud. Há acontecimentos que nos avivam a memória. No maremoto de reacções diversas e efusivas que se seguiu aos referidos acontecimentos, nasceu a Associação para a Laicidade da Psicanálise; associação esta que seria entretanto dissolvida.
Qual é, em 2010, a situação?
Numa carta recente (Jounal des Jounées), o psicanalista Yves Depelsenaire manifestava surpresa por ver que a Escola parecia integrar cada vez mais o princípio de que, de ora em diante, só os médicos ou psicólogos poderiam aspirar a fazer parte dela.
Depois de tudo, não deixa de ser irónico! Não digo cínico, uma vez que o cinismo antigo apostava no “caminho mais curto”; pelo contrário, neste caso, é após um longo caminho que se chega a isto: ao princípio do terceiro excluído, isto é, dos que não são médicos nem psicólogos.
Há dentro da Escola muitos que ainda se encontram numa tal situação (como é o caso de Yves Depelsenaire e do próprio Jacques-Alain Miller, salvo erro), mas eles serão cada vez mais raros. Uma espécie - como dizia Philippe Hellebois numa outra carta - em vias de extinção: os "nem...nem". Nem médicos, nem psicólogos.
Em resposta à carta de Yves Depelsenaire, Jacques-Alain Miller insistia, a certa altura, que não se trata sobretudo de saber o que a Escola pode fazer por nós (segundo o excessivo desejo de reconhecimento que mobiliza alguns dos que a demandam), mas o que cada um de nós pode fazer pela Causa.
Não deixa de ser um modo bastante pertinente de ver a questão. Todavia, que causa é esta quando ela parece excluir o que a extimiza, descentra, singulariza, laiciza, isto é, o que faz objecção ao todo, à unanimidade e ao “unanimismo”? O que a “des-ordena” radicalmente porque não resulta da “Ordem” (qualquer que ela seja, mesmo que seja a palavra-de-ordem), mas de um encontro, singular e contingente, com a causa incurável de cada um.
Estaremos, finalmente, a assistir ao depor as armas? É esta uma guerra perdida? Uma “denegação” em acto, ou seja, o reconhecimento de que afinal as “autoridades” (que acusavam Th. Reik de charlatanismo ou os psicanalistas de “impostores”) ganharam a guerra, ainda que se diga e repita que “não” em diversos fóruns?
A ver vamos! O debate continua. Yves Depelsenaire, na resposta que deu a Jacques-Alain Miller, dizia que é preciso defender com convicção o princípio da psicanálise leiga (psychananalyse profane).
Esta tem sido também a minha convicção desde que há quase vinte anos fui atraído pela causa psicanalítica, mesmo não sendo médico nem psicólogo.
O artigo de Freud tinha como causa imediata a acusação de charlatanismo dirigida pelas autoridades vienenses a Theodor Reik pelo facto de este exercer a psicanálise não sendo médico. Freud propõe-se mostrar, neste artigo, que o facto de ser médico não garante, só por si, uma especial capacidade para lidar com a causa analítica, carecendo esta de uma "formação" peculiar. É nesse sentido que podemos afirmar que o desejo de Freud se revela como sendo fundamentalmente laico.
Esta via da "laicidade" da psicanálise foi prosseguida, mais tarde, por Lacan, ao não discriminar entre as diversas proveniências dos membros da sua Escola (sendo indiferente, à partida, se estes eram médicos, psicólogos ou outra coisa qualquer), ao mesmo tempo que exigia um rigor apurado e um desejo decidido por parte de cada um deles. Lacan chegou mesmo a dizer, a certa altura, que o psicanalista só se autoriza por si mesmo, ou seja, que não importa a formação que ele traz de base, mas o desejo que desponta no processo de uma análise, a qual, sendo levada até ao fim, se pode revelar didáctica.
Em 2003, quando a psicanálise, juntamente com as psicoterapias de inspiração psicanalítica, sofreram a primeira onda de choque de um "sismo" que teve o seu epicentro numa simples emenda legislativa (a "Emenda Accoyer), sendo mais tarde seguida por diversas réplicas (Relatório INSERM, Livro Negro da Psicanálise...), houve quem se lembrasse do artigo de Freud. Há acontecimentos que nos avivam a memória. No maremoto de reacções diversas e efusivas que se seguiu aos referidos acontecimentos, nasceu a Associação para a Laicidade da Psicanálise; associação esta que seria entretanto dissolvida.
Qual é, em 2010, a situação?
Numa carta recente (Jounal des Jounées), o psicanalista Yves Depelsenaire manifestava surpresa por ver que a Escola parecia integrar cada vez mais o princípio de que, de ora em diante, só os médicos ou psicólogos poderiam aspirar a fazer parte dela.
Depois de tudo, não deixa de ser irónico! Não digo cínico, uma vez que o cinismo antigo apostava no “caminho mais curto”; pelo contrário, neste caso, é após um longo caminho que se chega a isto: ao princípio do terceiro excluído, isto é, dos que não são médicos nem psicólogos.
Há dentro da Escola muitos que ainda se encontram numa tal situação (como é o caso de Yves Depelsenaire e do próprio Jacques-Alain Miller, salvo erro), mas eles serão cada vez mais raros. Uma espécie - como dizia Philippe Hellebois numa outra carta - em vias de extinção: os "nem...nem". Nem médicos, nem psicólogos.
Em resposta à carta de Yves Depelsenaire, Jacques-Alain Miller insistia, a certa altura, que não se trata sobretudo de saber o que a Escola pode fazer por nós (segundo o excessivo desejo de reconhecimento que mobiliza alguns dos que a demandam), mas o que cada um de nós pode fazer pela Causa.
Não deixa de ser um modo bastante pertinente de ver a questão. Todavia, que causa é esta quando ela parece excluir o que a extimiza, descentra, singulariza, laiciza, isto é, o que faz objecção ao todo, à unanimidade e ao “unanimismo”? O que a “des-ordena” radicalmente porque não resulta da “Ordem” (qualquer que ela seja, mesmo que seja a palavra-de-ordem), mas de um encontro, singular e contingente, com a causa incurável de cada um.
Estaremos, finalmente, a assistir ao depor as armas? É esta uma guerra perdida? Uma “denegação” em acto, ou seja, o reconhecimento de que afinal as “autoridades” (que acusavam Th. Reik de charlatanismo ou os psicanalistas de “impostores”) ganharam a guerra, ainda que se diga e repita que “não” em diversos fóruns?
A ver vamos! O debate continua. Yves Depelsenaire, na resposta que deu a Jacques-Alain Miller, dizia que é preciso defender com convicção o princípio da psicanálise leiga (psychananalyse profane).
Esta tem sido também a minha convicção desde que há quase vinte anos fui atraído pela causa psicanalítica, mesmo não sendo médico nem psicólogo.
16.1.10
Moral da história
Temos ouvido nos últimos tempos uma série de vozes credenciadas apelando à "poupança", ao "corte" ( nos salários), ao "controlo" (do défice), à "moralização" (das finanças, da economia), à "contenção" (nos gastos, no consumo), enfim...
Provindos do capitalismo, tais apelos não deixam de parecer um tanto ou quanto suspeitos. Não é a essência do capitalismo, afinal de contas, a elevação do consumo ao zénite? O orgasmo do consumo, do hiperconsumo (Lipovestky)?
Não espanta, por isso, que as pessoas andem confusas, "desbussoladas" (Forbes). Devem ou não devem consumir? Se não há consumo, o capitalismo murcha, não é verdade?
O consumo é o viagra do capitalismo. Sem consumo, o capitalismo não infla, não se põe de pé. Dá-se a grande "deflação", a disfunção eréctil do capitalismo, se me permitem a analogia.
O que exigem de nós os novos grandes "moralistas" do capitalismo é, por assim dizer, que fiquemos "tesos"...sem tesão!
Moral da história?
Ou teremos já, como pretenderam alguns, chegado ao fim da história?
Em tempos assim, os "moralistas" surgem de onde menos se espera.
Provindos do capitalismo, tais apelos não deixam de parecer um tanto ou quanto suspeitos. Não é a essência do capitalismo, afinal de contas, a elevação do consumo ao zénite? O orgasmo do consumo, do hiperconsumo (Lipovestky)?
Não espanta, por isso, que as pessoas andem confusas, "desbussoladas" (Forbes). Devem ou não devem consumir? Se não há consumo, o capitalismo murcha, não é verdade?
O consumo é o viagra do capitalismo. Sem consumo, o capitalismo não infla, não se põe de pé. Dá-se a grande "deflação", a disfunção eréctil do capitalismo, se me permitem a analogia.
O que exigem de nós os novos grandes "moralistas" do capitalismo é, por assim dizer, que fiquemos "tesos"...sem tesão!
Moral da história?
Ou teremos já, como pretenderam alguns, chegado ao fim da história?
Em tempos assim, os "moralistas" surgem de onde menos se espera.
15.1.10
Será que é desta?
Tantas vezes se disse que Freud estava errado, ultrapassado, acabado...
Será que é finalmente desta?
A revista Philosophie Magazine decidiu lançar mais uma acha para a fogueira do debate colocando frente a frente Jacques-Alain Miller e Michel Onfray sob o lema: Acabar com Freud (En finir avec Freud)?
O resultado sairá no próximo número da revista (nº 36, 2010, disponível a partir de 21 de Janeiro, juntamente com um dossiê sobre Freud). Uma ante-visão do debate está já acessível em linha.
A não perder!
Será que é finalmente desta?
A revista Philosophie Magazine decidiu lançar mais uma acha para a fogueira do debate colocando frente a frente Jacques-Alain Miller e Michel Onfray sob o lema: Acabar com Freud (En finir avec Freud)?
O resultado sairá no próximo número da revista (nº 36, 2010, disponível a partir de 21 de Janeiro, juntamente com um dossiê sobre Freud). Uma ante-visão do debate está já acessível em linha.
A não perder!
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