23.12.07

Precisamos do vazio para respirar

Aqui há uns anos, uma das personagens do filme "Contacto" (baseado na obra homónima de Carl Sagan), perguntava - e cito de cor - para quê tanto espaço se não há mais vida inteligente para além da que existe no planeta terra?

A pergunta, que surge sob a forma de argumento (visando provar a necessidade de admitir, como hipótese racionalmente legítima, a existência de vida extraterrestre), releva, na verdade, de um típico "horror do vazio" que caracteriza, nomeadamente, a civilização ocidental. O homem ocidental é, basicamente, alguém que não sabe o que fazer, ou como fazer, com o vazio.

O espaço é, deste modo, concebido como algo que tem de ser conquistado, preenchido, colonizado. De preferência, com seres criados à nossa imagem e semelhança, mesmo quando diferentes. Desse ponto de vista, causa impressão e vertigem que haja tanto espaço vazio.

É neste contexto que fazem sentido (um sentido novo, como só os poetas são capazes) as palavras que tive a felicidade de escutar recentemente de um grande pensador e "amigo dos poetas", Eduardo Lourenço, num dos encontros subordinados ao tema "Café com Letras", que decorre uma vez por mês, salvo erro, na Biblioteca Municipal de Loures, e onde onde já estiveram igualmente outros grandes escritores, tais como Saramago ou Lobo Antunes, para referir apenas dois.

A certa altura, Eduardo Lourenço pediu aos assistentes que imaginassem o que aconteceria se de repente soubéssemos que o espaço acima da nossa cabeça tinha, por exemplo, um limite de 100, 1000, ou até mesmo 10000 Km, ou seja, que estávamos, literalmente, confinados a uma redoma.

A esta pergunta, respondeu o autor: teríamos dificuldade em respirar. Precisamos de todo o espaço do mundo, do cosmos, do infinito, para respirar bem.

Mesmo se poética, esta resposta não deixa de ser um belo contraponto à visão "americana" (e redutora) do espaço, vinda de alguém que já tem idade suficiente para brincar com a sua própria vida: "pertenço à geração, disse ele, dos que nunca mais acabam de morrer". Naturalmente, esta pequena ironia provocou uma gargalhada geral.

Que belo presente de Natal!

12.12.07

A importância da caixa

Num filme de 1994, "A Caixa", o conhecido cineasta Manoel de Oliveira mostra como uma simples caixa de esmolas pode ser o núcleo central e desencadeador de toda uma série de situações e acontecimentos.

Não me proponho recordar este filme. Simplesmente, ao ouvir, hoje, numa reunião de encerrramento das actividades lectivas, para a celebração do Natal, o educador do meu filho (alguém com ideias apararentemente lúcidas e bem arrumadas), dizer algo sobre as caixas de brinquedos, veio-me à memória este filme de Oliveira.

Dizia ele que os pais deveriam preocupar-se com o tipo de brinquedos que davam aos seus filhos, nesta época de Natal, uma vez que, mal aberta a "caixa", rapidamente o entusiasmo inicial pelo brinquedo desaparecia. O seu pensamento procurava vincar a ideia de que não vale a pena oferecer brinquedos muito caros ou sofisticados se todos eles estão condenados a ter uma vida efémera nas mãos das crianças. Mais vale, por isso, usar a imaginação e oferecer brinquedos porventura mais simples, mas com um efeito mais duradouro e imaginativo.

Tem razão, a meu ver, no essencial do que disse. Só faltou acrescentar o seguinte: em última análise, todos os brinquedos, do mais simples ao mais complexo, são indiferentes, porque aquilo que conta mais, para uma criança, não é tanto o brinquedo em si, mas antes o gesto e o momento de...abrir a caixa: aquele lapso de tempo, que pode ser mais ou menos demorado - pois não tem a ver com o tempo dos relógios -, em que tudo é ainda possível. Quando se abre a caixa, em vez da "coisa" esperada, o que se obtém é sempre pouco, apenas mais um "objecto" entre objectos. O efeito da "surpresa", como perceberam algumas marcas consagradas, resulta desse "tempo lógico" da abertura da caixa ou de um envólucro semelhante. Veja-se o caso, por exemplo, dos famosos "kinder surpresa": mais importante do que aquilo que acaba por ser aí colocado (sempre uma coisa de nada), é o facto de "isso" estar envolto em..mistério.

É por isso que a avó do anúncio (como se fosse outra vez criança) tem mais razão que o neto que lhe oferece um presente quando diz: "Uma caixa com um laço; obrigado, netinho". Claro que o neto também tem razão quando acrescenta: "Ó avó, tem de abrir a caixa!" Mesmo querendo dizer outra coisa, ambos dizem o essencial: fechada ou aberta, o importante é a caixa.

11.12.07

O riso de Saramago

Segundo uma afirmação recorrente do próprio, o conhecido Nobel da literatura , José Saramago, "não tem um riso fácil", sem que isso signifique, de modo algum, que não se emocione.

Foi a este propósito que eu o ouvi mais uma vez, um dias destes, num programa de rádio, repetir algo sobre a actual educação das crianças: toda ela parece apostada em fazer desaparecer a tristeza quanto antes. Ao primeiro sinal de tristeza, é preciso fazer algo: calar sem escutar o que ela tem a dizer, sem dar tempo.

Na verdade, é também de uma relação com o tempo que aqui se trata : não há tempo para escutar, por isso se (re)produzem e tomam em abundância, para gáudio das empresas farmacêuticas, pequenas pílulas mágicas, cada vez mais disseminados tanto por adultos como por jovens e, até, por crianças.

Um dos paradoxos é que, em vez de apaziguar a tristeza, uma tal postura parece estar a transformar-se, pelo contrário, numa bola de neve que vai arrastando tudo o que encontra pelo caminho.

É verdade que já os antigos diziam que a tristeza (a acédia) é um pecado; mas não seria de equacionar igualmente que o "riso fácil" (que se tenta promover a todo o custo) é, hoje, um pecado ainda maior?

Com efeito, na era do simulacro generalizado em que vivemos, a tristeza é, para alguns, uma das poucas formas de aceder, de tocar no "real". Consigam eles tirar partido disso.

9.12.07

Cilício e disciplina

Na edição de 6 a 12 de Dezembro de 2007, a revista Sábado dedicou um artigo à conhecida organização da igreja católica "Opus Dei" (pp. 52-64). A ocasião não deixa de ser propícia, devido ao avolumar de escândalos que têm envolvido, nos últimos tempos, pessoas directa ou indirectamente ligadas a esta organização.

À primeira vista, o que move estas pessoas é uma renúncia ao gozo (traduzida numa disciplina da mortificação do corpo e do prazer) em prol do trabalho (ou, nos termos do seu fundador, Josemaría Escrivá de Balaguer, da "santificação pelo trabalho"). Não é de estranhar que uma tal organização conviva tão bem com o capitalismo: no fundo, trata-se aqui da relação do sujeito capitalista com o gozo.

Com efeito, a disciplina da renúncia ao gozo em prol do trabalho, não vai sem um "lucro", uma -mais-valia, um suplemento de gozo. Prova disso, é, por exemplo, o uso instrumental - enquanto "objecto"- da "disciplina": um chicote de cordas que deve atingir as nádegas - porquê as nádegas? - enquanto o numerário, isto é, o membro interno da organização, reza uma oração à escolha, despido, uma vez por semana.

Um dos paradoxos da "renúncia ao gozo", como assinalava algures o velho Freud, é que ela é voraz e exige sempre mais, o que leva alguns, por exemplo, a acrescentar sempre novas formas de mortificação à sua "dieta".

O que acontece, não obstante, é esse "plus-de-jouir" (como diria Lacan) já não parece suficiente para apaziguar alguns ânimos...