26.8.07

Dois corpos nus

Visitei finalmente a colecção Berardo que se encontra exposta no centro Cultural de Belém. É uma viagem por alguns dos mais representativos movimentos da arte contemporânea, predominantemente dos anos sessenta.

Olhamos com relativo prazer, de forma mais ou menos interessada, alguns dos emblemas da arte do século XX (do Surrealismo à Pop Art, passando por Picasso, Modigliani, Duchamp, entre outros) até que, de repente, somos confrontados com a "escultura" realista de dois corpos nus, abraçados, no chão de uma sala.

Confesso que a colecção se vê com uma relativa indiferença: talvez por excesso de "mediatização" a que foram submetidas ao longo do tempo a maior parte daquelas imagens, elas já não nos surpreendem, hoje, verdadeiramente. O mais surpreendente acabam por ser dois "vídeos", um realizado no cemitério onde está sepultado o corpo de Marcel Duchamp, salvo erro (como se a morte fosse o resumo de toda a arte) e outro sobre os trágicos acontecimentos que abalaram a América aquando da morte do presidente Kennedy. Ambos têm um fundo sonoro, vocal, deliberadamente "sinistro" e mesmo "irritante". São "espaços" tornados impossíveis...de habitar.

Mas talvez a obra mais "surpreendente" seja a escultura de John de Andrea, não tanto pelo que ela representa, mas sobretudo pela reacção que provoca no espectador: de uma forma geral, o olhar é primeiro cativado, surpreendido; depois, subitamente, há um desvio do olhar. As pessoas não deixam, quando entram naquela sala, de olhar (é o momento em que o fascínio ainda veste de imaginário o excesso de "real"), mas logo depois vão deixar de olhar, parecendo "incomodadas", como se aquilo as tocasse no mais intimamente estranho de si mesmas. Algumas sorriem, outras deixam transparecer uma ligeira careta de repúdio. A causa é o extremo "realismo" com que é exibido, em particular, o sexo do homem e da mulher.

Por meio de uma técnica "hiper-realista", John de Andreia provoca em nós o olhar, não só na medida em que nós, espectadores, olhamos aquelas figuras nuas, mas sobretudo porque elas nos "olham", nos tocam, nos afectam...com uma estranha familiaridade. Elas dão-nos a ver o "objecto" do fascínio pelo nu quando este deixa de estar ornamentado com as vestes do imaginário e cai, por assim dizer, literalmente no real.

Sem comentários: