28.8.07

Inland Empire


Do último filme David Lynch, "Inland Empire"(em exibição hoje e amanhã no cinema Nimas), poder-se-ia dizer, em bom português, que não tem ponta por onde se lhe pegue. Não quero enunciar com isto um problema, mas antes um modo de aceder-lhe. Mesmo se a tentação do sentido é grande, é preciso abandonar, à porta do cinema, toda a esperança de sentido.

Filmes estranhos é algo a que o realizador já nos habituara desde a sua primeira longa metragem (Eraserhead, 1977). Também realizou o filme menos estranho e mais familiar que possa imaginar-se (The Straight Story, 1999). É um filme diverso de tudo o que ele já havia feito até ao momento, sem quase nenhum elemento estranho, a não ser o facto de o protagonista atravessar o país em cima de uma pequena maquineta de cortar a relva para visitar o irmão que se encontra doente e com quem não mantém boas relações desde há vários anos. É uma história familiar de reconciliação.

Este último filme, pelo contrário, retoma a vertente mais bizarra do cinema de Lynch: mal começa, o espectador é imediatamente mergulhado num espaço-tempo absolutamente estranho e descontextualizado. Depois, apercebe-se que se trata de um filme (dentro do filme). Quando julgava, finalmente, que o "pesadelo" ia terminar com o famoso "corta" (o corte simbólico que separa o espaço real do imaginário), apercebe-se, com assombro, que "confusão" entre o real e o imaginário vai continuar, ininterruptamente, até ao fim.

A este esbatimento (ou confusão) do imaginário e do real, poderíamos chamar, com Freud, Das Unheimliche: o sentimento de algo estranhamente familiar. Talvez o filme nos agarre, apesar de tudo, porque vai semeando, aqui e ali, indícios de familiaridade, como se tentasse esboçar um fio de narrativa, de sentido, para logo nos despistar e confundir.

Ele deve ver-se como a "outra cena", inconsciente, que nos povoa os sonhos (com a sua lógica onírica própria) e não como um "retrato", fiel ou infiel, do que quer que seja. A "outra cena" de que aqui se trata é o próprio cinema.

O perigo, não obstante, de filmes deste género, é que eles acabam por ter qualquer coisa de "perverso": criam a ilusão de que há "algo" onde não existe "nada".

27.8.07

A nossa necessidade de consolo é (im)possível de satisfazer

Por vezes, basta fazer um simples corte ou uma suspensão numa palavra para que ela ganhe um sentido completamente novo e até mesmo oposto.

Stig Dagerman é um autor sueco nascido em 5 de Outubro de 1923, a Norte de Estocolmo. Após falhar várias tentativas de suicídio, acaba por passar ao acto em 4 de Novembro de 1954, terminando desta forma abrupta uma carreira literária breve e fulgurante.

Um dos seus livros tem como título: A Nossa Necessidade de Consolo é impossível de satisfazer (Värt Behov av tröst), segundo a versão portuguesa de Paula Castro e José Daniel Ribeiro.

Quando se olha a coisa do ponto de vista do impossível, tudo o que possa existir de consolo (a que o autor, metaforicamente, chama "presa") é escasso e fugaz: "se sou solitário, uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro - um arco de palavras que com assombro reteso, uma súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar - um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido" (Fenda, 2004, p. 15).

No fundo, é a lógica do desejo humano: sempre aquém do seu objecto, ou relativamente ao qual todo o "objecto" é insatisfatório. Mas é também a lógica da impotência: haveria um consolo, uma satisfação absoluta, relativamente à qual somos impotentes.

Se mudarmos, porém, de ponto de vista, aquilo que nos aparecia como pouco, "escasso e fugaz", em relação ao "impossível", aparece-nos agora como aquilo que há, nem muito nem tempo, e de onde retiramos algum "gozo": o gozo possível.

Acontece que este ponto de vista não é natural: acaba por ser mais atractiva a lógica da (in) satisfação. A vida dá lenha aos que querem arder nesse fogo.

26.8.07

Dois corpos nus

Visitei finalmente a colecção Berardo que se encontra exposta no centro Cultural de Belém. É uma viagem por alguns dos mais representativos movimentos da arte contemporânea, predominantemente dos anos sessenta.

Olhamos com relativo prazer, de forma mais ou menos interessada, alguns dos emblemas da arte do século XX (do Surrealismo à Pop Art, passando por Picasso, Modigliani, Duchamp, entre outros) até que, de repente, somos confrontados com a "escultura" realista de dois corpos nus, abraçados, no chão de uma sala.

Confesso que a colecção se vê com uma relativa indiferença: talvez por excesso de "mediatização" a que foram submetidas ao longo do tempo a maior parte daquelas imagens, elas já não nos surpreendem, hoje, verdadeiramente. O mais surpreendente acabam por ser dois "vídeos", um realizado no cemitério onde está sepultado o corpo de Marcel Duchamp, salvo erro (como se a morte fosse o resumo de toda a arte) e outro sobre os trágicos acontecimentos que abalaram a América aquando da morte do presidente Kennedy. Ambos têm um fundo sonoro, vocal, deliberadamente "sinistro" e mesmo "irritante". São "espaços" tornados impossíveis...de habitar.

Mas talvez a obra mais "surpreendente" seja a escultura de John de Andrea, não tanto pelo que ela representa, mas sobretudo pela reacção que provoca no espectador: de uma forma geral, o olhar é primeiro cativado, surpreendido; depois, subitamente, há um desvio do olhar. As pessoas não deixam, quando entram naquela sala, de olhar (é o momento em que o fascínio ainda veste de imaginário o excesso de "real"), mas logo depois vão deixar de olhar, parecendo "incomodadas", como se aquilo as tocasse no mais intimamente estranho de si mesmas. Algumas sorriem, outras deixam transparecer uma ligeira careta de repúdio. A causa é o extremo "realismo" com que é exibido, em particular, o sexo do homem e da mulher.

Por meio de uma técnica "hiper-realista", John de Andreia provoca em nós o olhar, não só na medida em que nós, espectadores, olhamos aquelas figuras nuas, mas sobretudo porque elas nos "olham", nos tocam, nos afectam...com uma estranha familiaridade. Elas dão-nos a ver o "objecto" do fascínio pelo nu quando este deixa de estar ornamentado com as vestes do imaginário e cai, por assim dizer, literalmente no real.

25.8.07

Um certo modo de dizer


O que hoje recordo de Eduardo Prado Coelho, agora falecido, não é tanto a multiplicidade dos temas e domínios em que ele se aventurava, desde a crítica à poesia, da literatura ao cinema, da política à sociedade, da filosofia à música, do erudito ao banal..., mas sobretudo um modo de dizer inconfundível que misturava harmoniosamente a força dos argumentos e a brandura da voz.

Fica, por isso, a minha homenagem.

15.8.07

Uma preciosidade

Quando a voz se alia à sensualidade dos corpos em movimento, quais tecelões do espaço, o resultado é este naco de gozo.
Vale a pena, em tempo de férias, deleitar-se com esta preciosidade.

14.8.07

Profanações

Não são necessariamente os "grandes" livros que mais nos tocam. Há pequenas obras que têm sobre nós um tal poder de arrebatamento que é difícil explicar. Um bom exemplo é o livro de Giorgio Agamben, intitulado "Profanações" (Profanazioni), publicado em Portugal, em 2006, pelas Edições Cotovia.

Este não é sequer, de longe, o melhor ou o mais emblemático livro do autor. É apenas um conjunto disperso de textos com temas algo heteróclitos: Genius; Magia e felicidade; O dia do Juízo Final; Os ajudantes; Paródia; Desejar; O ser especial; O autor como gesto; Elogio da Profanação; Os seis minutos mais belos da história do cinema.

O que encanta nos pequenos livros, como este, é que eles não procuram elaborar qualquer filosofia, sistema, linha de pensamento coerente, mas antes traçar pontos de fuga, atalhos que nos levam por caminhos pouco usuais.

"Profanar", como explica o autor num dos textos (Elogio da profanação, p. 103-133), consiste em restituir aos homens o livre uso das coisas. Daí que o termo se oponha à palavra "consagrar" (sacrare), uma vez que esta designa a retirada das coisas da esfera do direito humano para as entregar aos deuses.

É com uma certa "magia"que se lêem estes textos. E não há, como mostra o autor num deles (pp. 25-30), felicidade sem magia.

8.8.07

Extimidade


Agosto é o mês em que toda a gente vai para fora: a praia, o campo, um outro país... Não quer dizer que a cidade fique vazia, não; ela fica cheia dos outros, dos estrangeiros, dos que vão igualmente para fora de outras cidades como esta, algures, num outro lugar qualquer da Europa, do mundo. Eles vêm, como estrangeiros, habitar, por um tempo, a cidade abandonada, dando-lhe um sopro de vida.

Por diversas razões que não vou dizer (chama-se a isto, na gíria psicanalítica, denegação), este ano vou permanecer na cidade. Como um "estrangeiro" entre estrangeiros. Um turista acidental.

Às vezes é preciso redescobrir essa estranheza do olhar, voltando a contemplar as coisas da maneira que só um estrangeiro é capaz: como se fosse a primeira vez. Foi o que pensei e senti ao percorrer, devagar, com o meu amigo Jean Luc, as velhas ruas vestidas com o manto do hábito, onde já não reparamos. Só ele é que era estrangeiro, no verdadeiro sentido da palavra, mas eu senti-me devir estrangeiro, numa espécie de conversão do olhar. Tornei-me estrangeiro não porque vinha de um outro lugar, como ele, mas porque de repente tudo me pareceu estranhamente familiar, quer dizer, com aquela familiaridade que nos faz reparar nas coisas a que estamos habituados, mas como se o olhar, vendo-as de fora, lhes tivesse restituído uma segunda infância, uma estranheza que nos surpreende e comove.

Foi então que me recordei de uma frase de Martin Heidegger: "O que nos parece natural é unicamente o habitual do há muito adquirido, que fez esquecer o inabitual de onde provém. Este inabitual, todavia, surpreendeu um dia o homem como algo de estranho, e levou o pensamento ao espanto" (A Origem da Obra de Arte).

De repente, esta frase pareceu-me tão clara e luminosa como a luz da cidade que eu amo. E uma espécie de magia embalou-me nos braços.

3.8.07

A tentação das profundezas

É grande a tentação de pensar que o conhecimento último, a verdade ou a essência das coisas, se encontra num lugar oculto, profundo, abaixo da superfície, e que é preciso escavar para que ele seja revelado.

O próprio Freud não escapou desta tentação, acabando, também ele, por ser enredado na metáfora das profundezas. Compreende-se que a sua paixão pela arqueologia tenha contaminado, a certa altura, a maneira de conceber o inconsciente. Ainda hoje há quem se refira a Freud como o inventor da "psicologia das profundezas".

Também no frenesim com que aparecem, todos os dias, novos títulos sobre a "revelação" de segredos e afins (disto e daquilo) - é extraordinário como a ciência mais avançada não conseguiu destronar, muito pelo contrário, o misticismo mais retrógrado - se nota a persistência dessa tentação da profundidade.

Contra esta tendência, vale a pena reler a "carta roubada" (The purloined letter), de Edgar Allan Poe (1845). Ele mostra, de forma magistral, como aquilo que se procura, aqui ilustrada pela circulação de uma carta, que passa de mão em mão, torna-se invisível, não porque esteja num lugar profundo, mas sim porque está à superfície, e ninguém (ou quase ninguém) tem por hábito observar atentamente o que está à superfície.

É então, como dizia Ernst Junger, que o problema se torna mais inquietante.