21.2.05

Mulhers encobertas

Há sítios no mundo onde, mais que em outros, se cobrem as mulheres. Por que razão se cobrem as mulheres?

A resposta mais simples e concisa que encontrei nos últimos tempos foi a de uma tal Chahdortt Djavann num livro que é inequivocamente um manifesto (o título original - Bas les voiles! - não deixa grande margem para dúvidas) e que foi publicado em português pela Gradiva em 2004 com o título: O Significado do Véu. Diz ela na página 12: "Uma rapariga é nada. o rapaz é tudo".

Traduzindo por outras palavras: cobrir as mulheres significa, literalmente, que "a mulher" não existe. Aquilo que é invisível torna-se inexistente. Não é representado. Em seu lugar, um vazio, uma negritude.

Do lado das mulheres, segundo a autora, é uma questão de escolha forçada (de alienção, diria Lacan): "O véu ou a morte". As mulheres, não todas, claro, acabam por escolher o véu, aceitando viver mais ou menos encobertas por detrás da cortina que lhes é imposta.

Até aqui, nada de especialmente novo. Nem sequer este livro me teria chamado a atenção se não tivesse dobrado este cabo. O interessante começa e reside no paradoxo: quanto mais se vela, mais se revela; quanto mais se esconde , mais se mostra; quanto mais se oculta, mais se acicata o desejo (eis o que mostram, por exemplo, a um outro nível, os trabalhos de Christo Javacheff). Ao ocultar uma coisa, faz-se reparar nela. O véu é uma espécier de dobra, de portão (o último trabalho de Christo chama-se "The Gates", cf. Expresso, Única, 12 de Fev. 2005), ambíguo como todos os portões, que tanto dá para fechar como abrir, entrar como sair, ocultar como revelar. "Aquilo que se esconde acaba por ser aquilo que se exibe, o interdito é o reverso o desejo" (p. 12). "É por isso que as mulheres de véu atraem ainda mais o olhar dos homens. " (p. 12)

De estigma de alienação (falta-em-ser), o véu transforma-se em objecto de reivindicação (ser identitário), como se tem visto nos últimos tempos, não sem alguma perplexidade, em certos países ocidentais, como a França, por exemplo. "A liberdade passa a ser a liberdade de se alienarem." (p. 42)

O véu tem a função da "bolinha vermelha" das nossas televisões: Olhai! Reparai! Está aí algo inter-dito! Eis o que talvez essas mulheres que reivindicam o véu tenham aprendido: a vencer quando parecem ter perdido, a manipular o desejo masculino (duplamente alienado, porque desconhecerdor) quando parecem apenas manipuladas. "Escondem aquilo para que provavelmente ninguém olharia, caso não o escondessem" (p. 26)

O véu tem uma significação erótica: ao mesmo tempo que interdita, acaba por ditar a lei do desejo. Lei incestuosa, como apreendeu muito bem a autora: "o véu guarda consigo o aroma do pecado, o odor da mãe proibida, a mãe objecto do desejo, desejo culpado e reprimido por leis ancestrais. (...) O véu lembra o amor da mãe, mas também a primeira ferida, o véu que os privou da mãe." (p. 16) É esta pulsão do inter-dito que intensifica a pulsão do olhar.

Eis a razão por que é preciso tapar cada vez mais, num processo interminável e sem fim que passa de geração em geração, como se cada parte nova do corpo que é coberta deixasse a descoberto uma outra parte. Objecto de horror ou objecto do desejo: é apenas uma questão de transpor a porta de um lado para o outro.

Daí talvez a ambivalência de muitos ocidentais perante o fenómeno: ao mesmo tempo que o repudiam (segundo a lei da razão) não deixam, mais ou menos na sombra ou às claras, de nutrir por ele um certo fascínio (segundo a lei do coração). Pressentem que alguma coisa da natureza do desejo aí se re-vela.

"Como espantarmo-nos por, num mundo e numa época em que a verdade é sempre velada, o véu estar na moda?" (p. 46)

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