21.2.05

a(g)alma do desejo

Deixei de ir à missa há vários anos. Apenas de vez em quando assisto a uma ou outra celebração. Foi o que aconteceu recentemente num cinema "perto de mim".
Se falo nestes termos do último filme de Manuel de Oliveira, não é por cinismo, mas antes por alguma reflexão a partir de um facto banal. A certa altura, a meio do filme, sou interrompido pelo ressonar de alguém que tinha adormecido atrás de mim. Ocorreu-me então a seguinte ideia: este tipo perdeu a fé!
O cinema é a fé dos que perderam a fé! Isto seria aplicável não apenas a Manuel de Oliveira, mas igualmente a Bergman (veja-se o último filme, Saraband, uma espécie de requiem - e não há dúvida de que os requiems costumam ser obras sublimes - pelas relações humanas). Poderíamos ainda, para completar o trio, acrescentar o nome de Godard; aliás, João Bénard da Costa (PúblicOnline, 11 de Fevereiro de 2003) já os considerou, em conjunto, como "os três maiores cineastas vivos". É uma questão de fé (no cinema), por isso não vou discuti-lo.
Bergman e Oliveira - para me restringir a estes dois - têm, de facto, algo em comun: uma mesma paixão pelo teatro e por um cinema que não desminta essa matriz, antes a engrandeça. O grande plano é a réplica cinematográfica do gesto teatral que lhe preside. Daí que este gesto tenda a confundir as categorias habituais com que se tenta apreender a coisa cinematográfica. A imagem-movimento e a imagem-tempo (para servir-me aqui de categorias deleuzianas) são postas à prova, designadamente no cinema de Oliveira. Uma imagem que tende para a inércia, para a imobilidade e um tempo cuja passagem é "difícil de suportar", como se diz algures no filme. Como se a arte (o teatro, o cinema...) traísse o desejo de imortalidade que a habitapara lá da descrença na imortalidade da alma. Só desse ponto de vista, talvez, se entendam as palavras de Oliveira ao dizer que este é "o seu filme mais esperançoso". Já Bergman não parece deixar grande margem para a esperança. Os dois, porém, estão unidos numa coisa: a afirmação de um estilo, singular, de um entusiasmo formal, estético, ainda quando, à volta, o mundo todo e história toda parecem implodir num desencanto sem remédio. Saber-fazer com o desencanto e para lá do desencanto: eis talvez o acto (de fé) e a lição a tirar!
O filme intitulado "O Quinto Império - Ontem como hoje" baseia-se na peça teatral "El-Rei Sebastião" de José Régio e enfileira ao lado de obras como "Non, ou a Vã Glória de Mandar" e "Palavra e Utopia" numa verdadeira desmontagem do poder e dos seus mecanismos. Aquilo a que assistimos é à imagem da impotência sob o poder e da solidão sob as vestes e o mito de grandeza. São essas impotência e solidão que preenchem a tela e fazem avançar, muito devagar, o tempo de uma noite, a noite de todos os pesadelos: aquela que antecede, segundo o dado histórico, a partida para o que será o grande desastre da nação portuguesa e a queda da dinastia e da independência nas areias de Alcácer Quibir. A bruma que se lhe segue (em todos os sentidos da palavra) e onde o rei desaparece é a tonalidade que marca, do princípio ao fim, entre a luz e a sombra, a paleta deste filme.
Não é um filme de acção. Não há cenas de batalha nem grandes movimentações. O combate é com os demónios que atormentam a alma, com as vozes dos mortos que se fazem escutar, com as palavras que se digladiam no interior de um sujeito dividido, porque em guerra consigo mesmo e com os seus fantasmas. O movimento dos corpos e das armas é aqui transposto para a(s) fala(s) que se vão adensando até, por vezes, ao grito. Eis porque não seria completamente despropositado aproximar esta obra de Oliveira (pela bruma e penumbra em que ela decorre e pelo carácter tendencialmente imóvel que a caracteriza) daquilo que um outro criador, o poeta Fernando Pessoa, chamou de teatro estático: "não a acção nem a consequência e progressão da acção, mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através da palavras."
Uma das imagens centrais e mais bem conseguidas do filme é, a meu ver, aquela em que a espada lançada ao ar pelo rei, num ataque de fúria, vem tranformar-se "alucinatoriamente", ao cair, na cruz de Cristo. É uma imagem fulgurante que mostra o sentido (a direcção) de todo o filme: tal como Cristo teve de encarnar, fazendo-se homem e morrendo como tal na realidade, para que o símbolo da sua imortalidade pudesse resplandecer, também o rei vai percebendo, numa identificação inequívoca, que é a morte real, e só ela, que pode garantir a imortalidade simbólica.
É a lição que o sapateiro santo (Luís Miguel Cintra) dá ao rei durante o sonho:"procura-se o que sempre nos foge e ama-se o que nunca se conhece". Eis a alma (a miragem) do desejo ou, como diziam os gregos (lidos por Lacan), a sua "agalma": só a morte pode encobrir para sempre o nada que se é e elevá-lo, graças ao mito, a objecto do desejo. Aquele que foi desejado antes de nascer, que recebeu o cognome de o desejado acaba por cobrir-se com o manto de um espesso nevoeiro que o há-de manter para sempre encoberto. Como diria o poeta da Mensagem, onde não faltam, aliás, referências ao quinto império, "o mito é o nada que é tudo".
Para os que têm fé, talvez o cinema ocupe, nos tempos modernos, o lugar do mito.

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