24.2.05
Chuva pasmada
Henri Michaux, Sem Título, 1978
No mais recente livro de Mia Couto, esse grande fazedor d'alíngua portuguesa (como diria o dr. Lacan) só as personagens que já morreram têm nome.
O nome mortifica. Ter um nome é estar de alguma forma já morto. O nome é a cifra de um gozo que não há, que já não há, que se perdeu. Por isso, Tirso de Molina fez dizer ao seu D. Juan, El Burlador de Sevilla - símbolo do gozo sem freio: "Quién soy? Un hombre sin nombre".
Também Lacan diz, algures, que o neurótico é essencialmente um sujeito sem nome. É esse o alento, a falta de ser, que o faz respirar.
Mas não é só o perverso ou o neurótico que não têm nome. Os vivos em geral - e sobretudo os que falam e são falados - não têm nome "porque estão sendo escritos, não cabem na página. Só os mortos têm identidade suficiente para merecerem um nome e se reverem nele." É ainda Mia Couto quem o diz, numa entrevista que concedeu a propósito de A Chuva Pasmada, o título do último livro (Os Meus Livros, número 24, Fevereiro de 2005).
O sujeito é sem nome próprio. Daí que chuva pasmada seja um nome tão bom ou tão mau como outro qualquer para o nomear.
Quem sou? Chuva pasmada
21.2.05
Mulhers encobertas
Há sítios no mundo onde, mais que em outros, se cobrem as mulheres. Por que razão se cobrem as mulheres?
A resposta mais simples e concisa que encontrei nos últimos tempos foi a de uma tal Chahdortt Djavann num livro que é inequivocamente um manifesto (o título original - Bas les voiles! - não deixa grande margem para dúvidas) e que foi publicado em português pela Gradiva em 2004 com o título: O Significado do Véu. Diz ela na página 12: "Uma rapariga é nada. o rapaz é tudo".
Traduzindo por outras palavras: cobrir as mulheres significa, literalmente, que "a mulher" não existe. Aquilo que é invisível torna-se inexistente. Não é representado. Em seu lugar, um vazio, uma negritude.
Do lado das mulheres, segundo a autora, é uma questão de escolha forçada (de alienção, diria Lacan): "O véu ou a morte". As mulheres, não todas, claro, acabam por escolher o véu, aceitando viver mais ou menos encobertas por detrás da cortina que lhes é imposta.
Até aqui, nada de especialmente novo. Nem sequer este livro me teria chamado a atenção se não tivesse dobrado este cabo. O interessante começa e reside no paradoxo: quanto mais se vela, mais se revela; quanto mais se esconde , mais se mostra; quanto mais se oculta, mais se acicata o desejo (eis o que mostram, por exemplo, a um outro nível, os trabalhos de Christo Javacheff). Ao ocultar uma coisa, faz-se reparar nela. O véu é uma espécier de dobra, de portão (o último trabalho de Christo chama-se "The Gates", cf. Expresso, Única, 12 de Fev. 2005), ambíguo como todos os portões, que tanto dá para fechar como abrir, entrar como sair, ocultar como revelar. "Aquilo que se esconde acaba por ser aquilo que se exibe, o interdito é o reverso o desejo" (p. 12). "É por isso que as mulheres de véu atraem ainda mais o olhar dos homens. " (p. 12)
De estigma de alienação (falta-em-ser), o véu transforma-se em objecto de reivindicação (ser identitário), como se tem visto nos últimos tempos, não sem alguma perplexidade, em certos países ocidentais, como a França, por exemplo. "A liberdade passa a ser a liberdade de se alienarem." (p. 42)
O véu tem a função da "bolinha vermelha" das nossas televisões: Olhai! Reparai! Está aí algo inter-dito! Eis o que talvez essas mulheres que reivindicam o véu tenham aprendido: a vencer quando parecem ter perdido, a manipular o desejo masculino (duplamente alienado, porque desconhecerdor) quando parecem apenas manipuladas. "Escondem aquilo para que provavelmente ninguém olharia, caso não o escondessem" (p. 26)
O véu tem uma significação erótica: ao mesmo tempo que interdita, acaba por ditar a lei do desejo. Lei incestuosa, como apreendeu muito bem a autora: "o véu guarda consigo o aroma do pecado, o odor da mãe proibida, a mãe objecto do desejo, desejo culpado e reprimido por leis ancestrais. (...) O véu lembra o amor da mãe, mas também a primeira ferida, o véu que os privou da mãe." (p. 16) É esta pulsão do inter-dito que intensifica a pulsão do olhar.
Eis a razão por que é preciso tapar cada vez mais, num processo interminável e sem fim que passa de geração em geração, como se cada parte nova do corpo que é coberta deixasse a descoberto uma outra parte. Objecto de horror ou objecto do desejo: é apenas uma questão de transpor a porta de um lado para o outro.
Daí talvez a ambivalência de muitos ocidentais perante o fenómeno: ao mesmo tempo que o repudiam (segundo a lei da razão) não deixam, mais ou menos na sombra ou às claras, de nutrir por ele um certo fascínio (segundo a lei do coração). Pressentem que alguma coisa da natureza do desejo aí se re-vela.
"Como espantarmo-nos por, num mundo e numa época em que a verdade é sempre velada, o véu estar na moda?" (p. 46)
A resposta mais simples e concisa que encontrei nos últimos tempos foi a de uma tal Chahdortt Djavann num livro que é inequivocamente um manifesto (o título original - Bas les voiles! - não deixa grande margem para dúvidas) e que foi publicado em português pela Gradiva em 2004 com o título: O Significado do Véu. Diz ela na página 12: "Uma rapariga é nada. o rapaz é tudo".
Traduzindo por outras palavras: cobrir as mulheres significa, literalmente, que "a mulher" não existe. Aquilo que é invisível torna-se inexistente. Não é representado. Em seu lugar, um vazio, uma negritude.
Do lado das mulheres, segundo a autora, é uma questão de escolha forçada (de alienção, diria Lacan): "O véu ou a morte". As mulheres, não todas, claro, acabam por escolher o véu, aceitando viver mais ou menos encobertas por detrás da cortina que lhes é imposta.
Até aqui, nada de especialmente novo. Nem sequer este livro me teria chamado a atenção se não tivesse dobrado este cabo. O interessante começa e reside no paradoxo: quanto mais se vela, mais se revela; quanto mais se esconde , mais se mostra; quanto mais se oculta, mais se acicata o desejo (eis o que mostram, por exemplo, a um outro nível, os trabalhos de Christo Javacheff). Ao ocultar uma coisa, faz-se reparar nela. O véu é uma espécier de dobra, de portão (o último trabalho de Christo chama-se "The Gates", cf. Expresso, Única, 12 de Fev. 2005), ambíguo como todos os portões, que tanto dá para fechar como abrir, entrar como sair, ocultar como revelar. "Aquilo que se esconde acaba por ser aquilo que se exibe, o interdito é o reverso o desejo" (p. 12). "É por isso que as mulheres de véu atraem ainda mais o olhar dos homens. " (p. 12)
De estigma de alienação (falta-em-ser), o véu transforma-se em objecto de reivindicação (ser identitário), como se tem visto nos últimos tempos, não sem alguma perplexidade, em certos países ocidentais, como a França, por exemplo. "A liberdade passa a ser a liberdade de se alienarem." (p. 42)
O véu tem a função da "bolinha vermelha" das nossas televisões: Olhai! Reparai! Está aí algo inter-dito! Eis o que talvez essas mulheres que reivindicam o véu tenham aprendido: a vencer quando parecem ter perdido, a manipular o desejo masculino (duplamente alienado, porque desconhecerdor) quando parecem apenas manipuladas. "Escondem aquilo para que provavelmente ninguém olharia, caso não o escondessem" (p. 26)
O véu tem uma significação erótica: ao mesmo tempo que interdita, acaba por ditar a lei do desejo. Lei incestuosa, como apreendeu muito bem a autora: "o véu guarda consigo o aroma do pecado, o odor da mãe proibida, a mãe objecto do desejo, desejo culpado e reprimido por leis ancestrais. (...) O véu lembra o amor da mãe, mas também a primeira ferida, o véu que os privou da mãe." (p. 16) É esta pulsão do inter-dito que intensifica a pulsão do olhar.
Eis a razão por que é preciso tapar cada vez mais, num processo interminável e sem fim que passa de geração em geração, como se cada parte nova do corpo que é coberta deixasse a descoberto uma outra parte. Objecto de horror ou objecto do desejo: é apenas uma questão de transpor a porta de um lado para o outro.
Daí talvez a ambivalência de muitos ocidentais perante o fenómeno: ao mesmo tempo que o repudiam (segundo a lei da razão) não deixam, mais ou menos na sombra ou às claras, de nutrir por ele um certo fascínio (segundo a lei do coração). Pressentem que alguma coisa da natureza do desejo aí se re-vela.
"Como espantarmo-nos por, num mundo e numa época em que a verdade é sempre velada, o véu estar na moda?" (p. 46)
a(g)alma do desejo
Deixei de ir à missa há vários anos. Apenas de vez em quando assisto a uma ou outra celebração. Foi o que aconteceu recentemente num cinema "perto de mim".
Se falo nestes termos do último filme de Manuel de Oliveira, não é por cinismo, mas antes por alguma reflexão a partir de um facto banal. A certa altura, a meio do filme, sou interrompido pelo ressonar de alguém que tinha adormecido atrás de mim. Ocorreu-me então a seguinte ideia: este tipo perdeu a fé!
O cinema é a fé dos que perderam a fé! Isto seria aplicável não apenas a Manuel de Oliveira, mas igualmente a Bergman (veja-se o último filme, Saraband, uma espécie de requiem - e não há dúvida de que os requiems costumam ser obras sublimes - pelas relações humanas). Poderíamos ainda, para completar o trio, acrescentar o nome de Godard; aliás, João Bénard da Costa (PúblicOnline, 11 de Fevereiro de 2003) já os considerou, em conjunto, como "os três maiores cineastas vivos". É uma questão de fé (no cinema), por isso não vou discuti-lo.
Bergman e Oliveira - para me restringir a estes dois - têm, de facto, algo em comun: uma mesma paixão pelo teatro e por um cinema que não desminta essa matriz, antes a engrandeça. O grande plano é a réplica cinematográfica do gesto teatral que lhe preside. Daí que este gesto tenda a confundir as categorias habituais com que se tenta apreender a coisa cinematográfica. A imagem-movimento e a imagem-tempo (para servir-me aqui de categorias deleuzianas) são postas à prova, designadamente no cinema de Oliveira. Uma imagem que tende para a inércia, para a imobilidade e um tempo cuja passagem é "difícil de suportar", como se diz algures no filme. Como se a arte (o teatro, o cinema...) traísse o desejo de imortalidade que a habitapara lá da descrença na imortalidade da alma. Só desse ponto de vista, talvez, se entendam as palavras de Oliveira ao dizer que este é "o seu filme mais esperançoso". Já Bergman não parece deixar grande margem para a esperança. Os dois, porém, estão unidos numa coisa: a afirmação de um estilo, singular, de um entusiasmo formal, estético, ainda quando, à volta, o mundo todo e história toda parecem implodir num desencanto sem remédio. Saber-fazer com o desencanto e para lá do desencanto: eis talvez o acto (de fé) e a lição a tirar!
O filme intitulado "O Quinto Império - Ontem como hoje" baseia-se na peça teatral "El-Rei Sebastião" de José Régio e enfileira ao lado de obras como "Non, ou a Vã Glória de Mandar" e "Palavra e Utopia" numa verdadeira desmontagem do poder e dos seus mecanismos. Aquilo a que assistimos é à imagem da impotência sob o poder e da solidão sob as vestes e o mito de grandeza. São essas impotência e solidão que preenchem a tela e fazem avançar, muito devagar, o tempo de uma noite, a noite de todos os pesadelos: aquela que antecede, segundo o dado histórico, a partida para o que será o grande desastre da nação portuguesa e a queda da dinastia e da independência nas areias de Alcácer Quibir. A bruma que se lhe segue (em todos os sentidos da palavra) e onde o rei desaparece é a tonalidade que marca, do princípio ao fim, entre a luz e a sombra, a paleta deste filme.
Não é um filme de acção. Não há cenas de batalha nem grandes movimentações. O combate é com os demónios que atormentam a alma, com as vozes dos mortos que se fazem escutar, com as palavras que se digladiam no interior de um sujeito dividido, porque em guerra consigo mesmo e com os seus fantasmas. O movimento dos corpos e das armas é aqui transposto para a(s) fala(s) que se vão adensando até, por vezes, ao grito. Eis porque não seria completamente despropositado aproximar esta obra de Oliveira (pela bruma e penumbra em que ela decorre e pelo carácter tendencialmente imóvel que a caracteriza) daquilo que um outro criador, o poeta Fernando Pessoa, chamou de teatro estático: "não a acção nem a consequência e progressão da acção, mas, mais abrangentemente, a revelação das almas através da palavras."
Uma das imagens centrais e mais bem conseguidas do filme é, a meu ver, aquela em que a espada lançada ao ar pelo rei, num ataque de fúria, vem tranformar-se "alucinatoriamente", ao cair, na cruz de Cristo. É uma imagem fulgurante que mostra o sentido (a direcção) de todo o filme: tal como Cristo teve de encarnar, fazendo-se homem e morrendo como tal na realidade, para que o símbolo da sua imortalidade pudesse resplandecer, também o rei vai percebendo, numa identificação inequívoca, que é a morte real, e só ela, que pode garantir a imortalidade simbólica.
É a lição que o sapateiro santo (Luís Miguel Cintra) dá ao rei durante o sonho:"procura-se o que sempre nos foge e ama-se o que nunca se conhece". Eis a alma (a miragem) do desejo ou, como diziam os gregos (lidos por Lacan), a sua "agalma": só a morte pode encobrir para sempre o nada que se é e elevá-lo, graças ao mito, a objecto do desejo. Aquele que foi desejado antes de nascer, que recebeu o cognome de o desejado acaba por cobrir-se com o manto de um espesso nevoeiro que o há-de manter para sempre encoberto. Como diria o poeta da Mensagem, onde não faltam, aliás, referências ao quinto império, "o mito é o nada que é tudo".
Para os que têm fé, talvez o cinema ocupe, nos tempos modernos, o lugar do mito.
7.2.05
Uma outra satisfação
Ela exibiu os sete (creio que eram sete) telemóveis para quem a via pela televisão como quem exibe um troféu de caça.
Tinha sete telemóveis, a rapariga. Sete.
O mais impressionante foi quando ela disse que tinha necessidade de todos eles para falar com esta, com aquela e com a outra.
Um telemóvel por amiga.
Imagino que uma pessoa destas não tenha tempo para para comer.
Na verdade, come palavras. Come e vomita, pois não deve ter muito tempo para as digerir.
Não interessa o que se diz, o que é preciso é dizer, dizer sem parar.
Falar tudo de todas as maneiras.
Enganam-se os que pensam que se trata de satisfazer uma necessidade comunicativa; o que se trata é de um novo modo de gozar.
O telemóvel representa um novo destino para a pulsão, como diria o dr. Freud, que não tinha telemóvel.
Pela boca se come; pela boca se fala. Há os que comem e não falam (eu, por exemplo, ouvi desde muito cedo que não se fala à mesa, quer dizer, quando se come). Há os que falam e não comem.
E há os que comem palavras: aqueles para quem falar é comer.
Falo, logo gozo, poderia ter dito Descartes se usasse telemóvel.
Fala! Goza!
Tinha sete telemóveis, a rapariga. Sete.
O mais impressionante foi quando ela disse que tinha necessidade de todos eles para falar com esta, com aquela e com a outra.
Um telemóvel por amiga.
Imagino que uma pessoa destas não tenha tempo para para comer.
Na verdade, come palavras. Come e vomita, pois não deve ter muito tempo para as digerir.
Não interessa o que se diz, o que é preciso é dizer, dizer sem parar.
Falar tudo de todas as maneiras.
Enganam-se os que pensam que se trata de satisfazer uma necessidade comunicativa; o que se trata é de um novo modo de gozar.
O telemóvel representa um novo destino para a pulsão, como diria o dr. Freud, que não tinha telemóvel.
Pela boca se come; pela boca se fala. Há os que comem e não falam (eu, por exemplo, ouvi desde muito cedo que não se fala à mesa, quer dizer, quando se come). Há os que falam e não comem.
E há os que comem palavras: aqueles para quem falar é comer.
Falo, logo gozo, poderia ter dito Descartes se usasse telemóvel.
Fala! Goza!
4.2.05
Saraband: algumas notas
Prólogo:
À entrada deste filme poderia haver, como na porta do Inferno, segundo Dante, a seguinte inscrição: "Ó vós que entrais, abandonai a esperança". Abandonai a esperança de que o passado seja reparável ou não interfira com o presente; de que o sentido venha resgatar-nos do não-sentido; de que a música, sublime, apazigue o nosso mal-estar (ela pode, quando muito, acompanhá-lo, pontuá-lo...); de que, enfim, haja entre os sexos e as gerações um entendimento que não seja contingente, equívoco ou baseado num amor e num ódio que tendem a revelar-se destrutivos. Aquilo a que assistimos durante cerca de duas horas é a esta dança da desesperança, como já alguém lhe chamou, jogando com um dos sentidos do título ( Jorge Leitão Ramos, Expresso).
Um:
Se é verdade que o sentido daquilo que se diz só mais tarde, après-coup, se revela, então este filme, o último e talvez derradeiro de Bergman, tem uma importância decisiva; não porque ele seja a obra-prima absoluta (em Bergman esta designação poderia caber perfeitamente a outras obras), mas porque é uma espécie de súmula, de olhar final e retrospectivo, sobre alguns dos temas obsessivamente desfiados por um estilo cada vez mais concentrado, limpo, minimal até - e por que não dizer branco, se uma das imagens centrais do filme termina numa espécie de apoteose de brancura que quase nos cega?!
Dois:
A esta sublimidade formal, corresponde, para desencanto de alguns, uma monotonia temática: os mesmos temas de sempre voltam a entrar em cena. Os mesmos impasses. As mesmas lamentações. Razão parecia ter T.S. Eliot quando, num poema (Os Homens Ocos), escrevia: "É assim que o mundo acaba/não com um estrondo mas com uma lamúria". Acabará assim o cinema de Bergman, ele que tanta vezes traíu, pelo acto de voltar a filmar, o dito ou a promessa antiga de que esse negócio estaria acabado?
Três:
Marianne (Liv Ullmann) faz uma visita ao passado, guiada pelas imagens (recordações) e fotografias que conserva dele, e o que encontra é - para desencanto nosso, talvez - o mesmo drama de sempre. Após tantas revoluções, críticas ferozes (alguns autores, como Deleuze e Guattari, estiveram na vanguarda dessas críticas), o que se encontra por fim é o quê? Nem mais nem menos que o famoso Édipo. Um dos mais sublimes cineastas de sempre acaba a carreira (?) a filmar o drama edipiano e as suas lamúrias.
Quatro:
É uma nova versão (e complicação) do tema edipiano ao qual Freud, uma das presenças do filme, chegando mesmo a ser nomeado a propósito de uma biografia que Johan ( sem dúvida o "alter ego" do próprio Bergman) estava a ler, dera, no seu tempo, uma importância nuclear e estruturante. É uma "père-version" do Édipo, podíamos dizê-lo assim, já que os dois pais (Henrik e Johan) não saem bem na fotografia: em vez de serem os agentes da pacificação do desejo, eles são, pelo contrário, os instigadores de um gozo incestuoso (Henrik) e de um ódio sem princípio nem fim (Johan). Um pai que é um amante da própria filha e outro pai que nem sequer é um pai, segundo uma das acusações que lhe são dirigidas.
Cinco:
A tese de fundo, já desenvolvida em filmes anteriores (como, nomeadamente, "Cenas da Vida Conjugal", de que este último é um prolongamento e uma conclusão lógica) é que não há, para o ser humano, um ser falado e falante, qualquer harmonia pré-estabelecida entre os sexos (homens e mulheres) ou as gerações (pais e filhos). É interessante reparar, a este propósito, como a placidez sem drama (imaginada) das personagens se esfuma tão logo elas começam a falar. A fala revela o drama que habita as almas de uns e de outros. Os impasses edipianos são, no fundo, apenas uma versão ou condensação desses impasses mais primários e estruturais a que o cinema de Bergman tem vindo a dar rosto e voz: a não-relação.
Seis:
Os impasses não resolvidos de uma geração acabam por reflectir-se na seguinte. Ao excesso de ódio pelo filho (Johan) corresponde neste (Henrik) um excesso de amor pela filha, tolhida e angustiada no seu desejo. Henrik, que nunca foi amado pelo pai, que amou excessivamente a mulher (Anna) e a filha (Karin), não suporta a falta (da mulher morta, da filha que o pode abandonar) e passa ao acto, tentando suicidar-se.
Sete:
A fronteira que separa os vivos e os mortos não está muito bem definida. Johan, como um verdadeiro obsessivo, chega mesmo a dizer, a certa altura, que não sabe se está vivo ou morto. Talvez esteja morto e não o saiba. Morto pelo ódio sem princípio nem fim, sem justificação. Mas também Anna (a mulher morta de Henrik, a mãe de Karin, a nora de Johan), cuja ausência presente acaba por se impor. Anna é mesmo a grande protagonista do filme. Aquela que não tem o dom da palavra, que não fala porque está morta (temos apenas uma imagem a preto e branco), faz falar todos os outros: Henrik justifica o seu comportamento por essa perda irreparável; Johan balanceia o ódio que sente pelo filho com o amor que nutria por Anna; Karin busca nela ( e na carta que esta escrevera, antes de morrer, a Henrik) um outro amor diferente daquele em que se encontra enclausurada, mas também uma causa para não desistir do seu desejo; Marianne, enfim, reconciliando-se e reconhecedo- (se) na filha Martha ("pela primeira vez, nas nosssa duas vidas, percebi, senti, que tinha tocado na minha filha") na sequência de uma série de perguntas que faz, precisamente, sobre Anna e o amor que lhe supõe.
Oito:
Um dos temas Kierkegaardianos (Kierkegard é outro dos autores convocados) que assombram este filme de Bergman (bem como outros filmes do autor) é a angústia. Angústia é o que sente, por exemplo, Henrik nos momentos em que receia ser abandonado, deixado só, desamparado e desarmado, tanto pela mulher (episódio antigo a que a morte veio dar uma concretude real) como pela filha (uma das principais cenas do filme ilustra bem essa angústia e as reacções em cadeia que provoca). Angústia é o que sente também Karin, hesitando entre ser o objecto do fantasma paterno, ficando alienada ao amor incestuoso em que este a aprisiona, ou levando por diante, não sem custos, o desejo de separar-se desse amor e prosseguir viagem. Angústia, finalmente, é o que sente Johan, o aparentemente menos angustiado dos três, mas que, a certa altura, já perto do fim, se sente desafazer todo numa "diarreia de angústia".
Nove:
Contra aquilo que pode enganar (por exemplo, a beleza da paisagem, numa das raras incursões da câmara no exterior), a angústia é, verdadeiramente, "aquilo que não engana" (segundo uma expressão de Lacan, no Seminário X). A angústia não é um conceito que Johan possa dominar mentalmente, mas um afecto que lhe desnuda o ser (não é talvez por acaso que ele se despe, após esse momento de angústia, pedindo à ex-mulher que se dispa também). A angústia é, para Henrik, a positivização de um vazio impossível de suportar. A angústia é também um momento fecundo, nomeadamente para Karin: momento de verdade que separa o gozo (incestuoso) do desejo. É finalmente este desejo que a faz partir.
Dez:
Poder-se-ia estabelecer uma linha divisória entre os homens e as mulheres deste filme. Do lado dos homens, para além do ódio, da perversão e do silêncio que finalmente se instala, não há muito mais a esperar. Do lado das mulheres, pelo contrário, espera-se que qualquer coisa de novo, não se sabe bem o quê, possa brotar. É engraçado como Bergman, sendo homem, deposite essa réstea de esperança nas mulheres. Saramago, um outro homem, parece ter o mesmo fascínio por este possível papel redentor das mulheres num mundo de homens aparentemente sem saída. Talvez não passe de uma esperança ingénua ou o deter-se num certo limiar (uma pintora como Paula Rego, por exemplo, ilustra bem, em muitos quadros o que pode haver para além desse limiar). Ou então, é uma espécie de aposta de que haverá do outro lado, do lado do Outro, do Outro sexo, no caso, saídas, embora imprevisíveis e contingentes, que parece não haver deste lado, do lado do um.
Epílogo:
Quando Martha, a filha de Marianne, abre os olhos no final, há como que uma pequena luz que se acende. Por breves instantes, é certo. Mas não é o instante a alma do tempo?
1.2.05
Subscrever:
Mensagens (Atom)