Um pequeno artigo que tive a oportunidade de ler no último número do jornal Expresso (25 de Setembro, p. 44) chamou-me a atenção para um ensaio de Lera Boroditsky, investigadora e professora de psicologia e neurociência da Universidade de Stanford, intitulado: How Does Our Language Shape the Way We Think.
Nesse artigo, a investigadora referida demonstra que as pessoas que falam diferentes línguas pensam diferentemente. A língua afecta não só o pensamento, mas também a forma como vemos o mundo ou vivemos as nossas vidas.
Se a tese não é propriamente nova, pois já a "hipótese Sapir-Whorf" havia trilhado essa via, ela tem, não obstante, um interesse redobrado: não só porque, vindo de onde vem, possui uma consistência científica que lhe dá credibilidade, mas igualmente porque, vinda de onde vem, acaba por lançar uma nova acha para a fogueira da controvérsia que opõe aqueles que defendem a "primazia da linguagem" (Heidegger, Lacan...) e aqueles (Damásio, por exemplo) que a "secundarizam", como se esta fosse apenas um epifenómeno relativamente ao pensamento, às imagens ou aos mapas neurais.
O artigo do Expresso, por outro lado, não deixa de ter um redobrado e paradoxal interesse: é que, depois de falar de um ensaio em que é defendido o carácter determinante da língua no modo como pensamos, ele acaba por concluir o seguinte: "Por isso, todos -médicos, investigadores, cientistas, universidades, empresários, investidores e políticos - devem falar a mesma língua; a da inovação , empreendedorismo, motivação, produtividade. Portugal e a Europa beneficiarão desta qualidade."
Falar a mesma língua significa, neste contexto, pensar da mesma maneira, ou de uma maneira só. Sem alteridade.
Não é isto o que justifica que um dia depois, no seguimento do resultado de umas eleições em que o povo, soberanamente, decidiu que não queria que se falasse uma só língua no parlamento (para não se pensar de uma maneira só), algumas vozes se ergueram para dizer que vinha aí o caos, o perigo da ingovernabilidade, e que era porventura trágico o cenário que se avizinhava?
Será que o luto do salazarismo não cessa de não se efectuar entre nós? Que o "ritual" da celebração do 25 de Abril, ano após ano, como tem relembrado José Gil, não passa de uma forma vazia, de um faz de conta, de um puro simulacro?
Quando falamos uma só língua, podemos entender-nos melhor, mas aquilo que dizemos é mais pobre, mesmo que aumente a produtividade.
Um dia - lá chegaremos! - há-de falar-se na Europa (quiçá no mundo) uma só língua, pois falar várias línguas custa muito dinheiro, é improdutivo e gera um sem número de mal-entendidos.
Mas que será de nós, então, repetindo, em eco, banalidades ou meras tautologias?
29.9.09
10.9.09
Inventar conceitos
Segundo Deleuze, a filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar conceitos (O que é a Filosofia?, p. 10).
Haverá um conceito que permita pensar Portugal e os portugueses sem cair no mero senso comum, na simples anedota (mesmo se espírito não nos falta para anedotar sobre nós próprios) ou numa qualquer "psicanálise mítica do destino portugês" (E. Lourenço)?
Para José Gil, deleuziano convicto, a resposta é o conceito que ele mesmo propôs no livro Portugal, hoje - O medo de existir (Relógio D'Água, 2004): " a não- inscrição". Segundo a tese avançada nesse livro, Portugal seria o país da não-inscrição. Um país onde nada "acontece" realmente, mesmo se sucede muita coisa, se há um falatório geral, constante e mediático sobre tudo e sobre nada. Todo o acontecimento é, por assim dizer, esvaziado de substância, de conteúdo, restando dele a mera forma vazia e sem consequências.
Poderíamos pensar este conceito de "não-inscrição", em termos psicanalíticos, como uma espécie de "branco" (ou de branca) inconsciente que irradia, por contágio, a tudo o que se diz ou se faz, retirando-lhe toda e qualquer carga ou eficácia reais. A razão nuclear desta brancura, da não-inscrição e "desnorte" que a mesma implica (Cf. Em busca da identidade - o desnorte, Relógio D'Água, 2009) deve-se , segundo José Gil, ao facto de os portugueses não terem feito o luto do salazarismo (ideia repetida no último nº da revista Ler, p. 24-27). Mais do que uma não-inscrição desse luto a nível simbólico, tratar-se-ia de uma verdadeira "forclusão" do (seu) real, de tal modo que não cessamos de ritualizar, de celebrar (simbolicamente) o enterro do salazarismo - como acontece todos os anos por altura do 25 de Abril -, mas tais rituais ou celebrações não passam hoje de meras caricaturas formais sem o mínimo alcance real.
Esta fractura, esquize ou divórcio cada vez maiores entre a forma e o conteúdo está bem patente num exemplo dado por José Gil no seu último livro Em Busca da Identidade - O desnorte; um exemplo, aliás, bem conhecido de todos os portugueses. Quando mais de 100 000 professores, por duas vezes consecutivas, se manifestaram nas ruas de Lisboa contra o modelo de avaliação que o governo pretendia impôr-lhes, este respondeu com silêncio e inacção, justificando-os com esta frase: "Estamos em democracia, toda a gente tem o direito de se manifestar. Que se manifestem à vontade. Mas temos também o direito de continuar a fazer o que fazemos."
José Gil explica esta frase e a atitude que lhe subjaz da seguinte forma: "Deixando intactos os meios de contestação mas fazendo desaparecer o seu alvo, desinscreve-os do real. É uma técnica de não-inscrição. Ao separar os meios do alvo, faz-se do protesto uma brincadeira de crianças, uma não-acção, uma acção não performativa. Esta reduz-se a um puro discurso contestatário, esvaziado do conteúdo real a que reenviava. (...) Conviria chamar a este mecanismo tão eficaz a "desactivação da acção". É a não-inscrição elevada ao estatuto sofisticado de uma técnica política, à maneira de certos processos priscóticos." (p. 55-56).
O próprio modelo de avaliação que este governo quis impor aos professores (e não só) é um exemplo bastante eloquente da não-inscrição como técnica, estratégia ou retórica política: tenta cobrir-se com um manto de papéis, de burocracia, de infindáveis normas e procedimentos formais (que nem a Kafka lembrariam) o grande vazio de ideias que alimenta esta máquina infernal.
Só que a avaliação não é um caso meramente português (como tem mostrado sobejamente Jacques-Alain Miller, desde 2004). Com ela, outras "linhas de fuga" nos percorrem (a Europa, a Globalização), algo que vem de "fora" e que é cada vez mais difícil ou impossível de reduzir a um "dentro" (a uma qualquer "identidade" só nossa), um vórtice impulsionado pelos discursos da ciência e do capitalismo que tudo arrastam, no seu imparável movimento, até à mais impessoal e completa "desterritorialização".
Pensar Portugal e os portugueses não será ainda, neste contexto, uma tentativa desesperada, narcísisca, de suster a respiração, por assim dizer, antes da queda na vertigem da Alteridade que aí vem, que já mora em nós? Não continuamos desta forma a querer ser portugueses antes de sermos homens?
1.9.09
O preço do gozo
O número hors-série da revista francesa "Le Point" (Julho-Agosto de 2009) é integralmente consagrado a um tema milenar e caro aos tempos que correm: a felicidade.
Sobre o tema da felicidade correram já rios de tinta ao longo do tempo: quer seja "a felicidade à antiga" (Platão, Aristóteles, Epicuro, Séneca, Cícero...), a "felicidade trágica dos modernos (Rousseau, Kant, Aldous Huxley ou Camus...) ou a visão ocidental ou oriental sobre a felicidade, o que é certo é que esta não deixou de constituir matéria de reflexão e, sobretudo, de digressão. Discorre-se em torno de algo que não há: uma fórmula, uma definição única. A tradução actual deste fenómeno é a proliferação de toda uma literatura (mais ou menos light) que arrisca fórmulas atrás de fórmulas.
O que é novo, hoje, na felicidade não é o tema, mas o enfoque: ela deixou de constituir uma aspiração, um desejo para transformar-se num dever, numa obrigação. É aquilo a que o conhecido escritor e filósofo Pascal Bruckner chama, num texto introdutório, "a tirania da felicidade" (pp. 7-9). Este é um tema, aliás, que o autor já desenvolvera em livros anteriores, nomeadamente: A Euforia perpétua - Ensaio sobre o dever de felicidade 2000).
É neste texto, dedicado à tirania da felicidade, que o autor fala de uma mudança ocorrida em meados do século XX, mas que não deixou de acentuar-se ao longo das décadas seguintes: o crédito.
A concessão de crédito implicou uma mudança na forma como o sujeito se relaciona com o tempo, mas também com o gozo: até então o sujeito, para gozar (de um bem) tinha de esforçar-se, trabalhar a fim de conseguir os meios que lhe permitiriam gozar um dia, mais tarde. A consequência é que a "realidade" ia adiando o "prazer", a hora de gozar, para um futuro cada vez mais longínquo e incerto. O gozo era assim relegado, na maior parte dos casos, para o domínio do sonho, da utopia, do além (mola, afinal, de muitas religiões).
Com o crédito, o cenário inverte-se: goza-se primeiro (a crédito) antes de pagar o respectivo preço. A consequência é que, em muitos casos, é impossível pagá-lo. O crédito é a outra face da dívida. A civilização do crédito gera cada vez mais "sobre-endividados" do gozo. Um gozo impossível de pagar, de transaccionar. Um gozo onde falta a moeda do desejo.
Será o desejo (aquele mesmo de que falava Sócrates no "Banquete" de Platão) o preço certo para o gozo?
Sobre o tema da felicidade correram já rios de tinta ao longo do tempo: quer seja "a felicidade à antiga" (Platão, Aristóteles, Epicuro, Séneca, Cícero...), a "felicidade trágica dos modernos (Rousseau, Kant, Aldous Huxley ou Camus...) ou a visão ocidental ou oriental sobre a felicidade, o que é certo é que esta não deixou de constituir matéria de reflexão e, sobretudo, de digressão. Discorre-se em torno de algo que não há: uma fórmula, uma definição única. A tradução actual deste fenómeno é a proliferação de toda uma literatura (mais ou menos light) que arrisca fórmulas atrás de fórmulas.
O que é novo, hoje, na felicidade não é o tema, mas o enfoque: ela deixou de constituir uma aspiração, um desejo para transformar-se num dever, numa obrigação. É aquilo a que o conhecido escritor e filósofo Pascal Bruckner chama, num texto introdutório, "a tirania da felicidade" (pp. 7-9). Este é um tema, aliás, que o autor já desenvolvera em livros anteriores, nomeadamente: A Euforia perpétua - Ensaio sobre o dever de felicidade 2000).
É neste texto, dedicado à tirania da felicidade, que o autor fala de uma mudança ocorrida em meados do século XX, mas que não deixou de acentuar-se ao longo das décadas seguintes: o crédito.
A concessão de crédito implicou uma mudança na forma como o sujeito se relaciona com o tempo, mas também com o gozo: até então o sujeito, para gozar (de um bem) tinha de esforçar-se, trabalhar a fim de conseguir os meios que lhe permitiriam gozar um dia, mais tarde. A consequência é que a "realidade" ia adiando o "prazer", a hora de gozar, para um futuro cada vez mais longínquo e incerto. O gozo era assim relegado, na maior parte dos casos, para o domínio do sonho, da utopia, do além (mola, afinal, de muitas religiões).
Com o crédito, o cenário inverte-se: goza-se primeiro (a crédito) antes de pagar o respectivo preço. A consequência é que, em muitos casos, é impossível pagá-lo. O crédito é a outra face da dívida. A civilização do crédito gera cada vez mais "sobre-endividados" do gozo. Um gozo impossível de pagar, de transaccionar. Um gozo onde falta a moeda do desejo.
Será o desejo (aquele mesmo de que falava Sócrates no "Banquete" de Platão) o preço certo para o gozo?
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