Apesar de não vir a Portugal, o chamado "autocarro ateu" anda por aí. Já passou em Espanha, aparentemente sem grande alarido. Com indiferença, até. As pessoas parecem andar mais preocupadas com a crise económica (essa mesma que não lhes deixa desfrutar a vida como gostariam!) do que com autocarros ateus ou cristãos.
Trata-se de uma campanha que começou em Londres (salvo erro), e que apela, em grandes letras, a que se goze a vida, visto que provavelmente Deus não existe.
Vivemos na época da marcha e do orgulho; coube, desta vez, ao orgulho ateu fazer também a sua marcha.
Confesso que para quem leu Nietzsche ou Dostoiévski, este "probably" está a mais. Há muito tempo que Nietzsche havia declarado, sem precisar de letras garrafais para o efeito, que "Deus está morto". Mas nem por isso um deus morto deixa de ser eficaz. Aliás, ao sujeitar-se voluntariamente à morte, em vez de fechar as portas para o gozo, não as terá escancarado, como mostram todos os anos aqueles filipinos...que se deixam fustigar e crucificar voluntariamente?
Mais longe foi Saramago - um ateu, por sinal - ao dizer que Deus não desaparecerá enquanto não desaparecer o nome de Deus. Mesmo que Deus não exista, que seja um puro vazio, enquanto a linguagem o fizer ex-sistir, Deus ex-sistirá. Certainly! A frase escrita no autocarro é uma prova da existência de Deus.
Importa, contudo, ir um pouco além dos prós e dos contras para avaliar o alcance que estes pequenos acontecimentos do quotidiano revelam da transformação, da mudança no estado do mundo: passámos de um discurso que assentava na predominância do não (não faças isto ou aquilo!) para um discurso baseado no sim (faz isto ou aquilo!). Neste caso, goza, desfruta, aproveita a vida!
Confrontados com um imperarativo deste tipo, das duas uma: ou se diz explicitamente qual é a boa, a forma correcta de gozar a vida (o que dá azo ao surgimento de todo tipo de novos mestres e gurus, baseando a eficácia das suas "receitas" no poder da "sugestão") ou, pelo contrário, se mergulha o sujeito na angústia (de ter de gozar a todo o custo sem saber como) ou na "culpa" (não porque lhe seja proibido gozar, mas por não gozar suficiente, adequadamente bem...como é suposto ter de se gozar).
Talvez o que falte pôr a circular não seja um autocarro do gozo, mas um eléctrico chamado desejo...