29.1.09

Enjoy life!


Apesar de não vir a Portugal, o chamado "autocarro ateu" anda por aí. Já passou em Espanha, aparentemente sem grande alarido. Com indiferença, até. As pessoas parecem andar mais preocupadas com a crise económica (essa mesma que não lhes deixa desfrutar a vida como gostariam!) do que com autocarros ateus ou cristãos.

Trata-se de uma campanha que começou em Londres (salvo erro), e que apela, em grandes letras, a que se goze a vida, visto que provavelmente Deus não existe.

Vivemos na época da marcha e do orgulho; coube, desta vez, ao orgulho ateu fazer também a sua marcha.

Confesso que para quem leu Nietzsche ou Dostoiévski, este "probably" está a mais. Há muito tempo que Nietzsche havia declarado, sem precisar de letras garrafais para o efeito, que "Deus está morto". Mas nem por isso um deus morto deixa de ser eficaz. Aliás, ao sujeitar-se voluntariamente à morte, em vez de fechar as portas para o gozo, não as terá escancarado, como mostram todos os anos aqueles filipinos...que se deixam fustigar e crucificar voluntariamente?

Mais longe foi Saramago - um ateu, por sinal - ao dizer que Deus não desaparecerá enquanto não desaparecer o nome de Deus. Mesmo que Deus não exista, que seja um puro vazio, enquanto a linguagem o fizer ex-sistir, Deus ex-sistirá. Certainly! A frase escrita no autocarro é uma prova da existência de Deus.

Importa, contudo, ir um pouco além dos prós e dos contras para avaliar o alcance que estes pequenos acontecimentos do quotidiano revelam da transformação, da mudança no estado do mundo: passámos de um discurso que assentava na predominância do não (não faças isto ou aquilo!) para um discurso baseado no sim (faz isto ou aquilo!). Neste caso, goza, desfruta, aproveita a vida!

Confrontados com um imperarativo deste tipo, das duas uma: ou se diz explicitamente qual é a boa, a forma correcta de gozar a vida (o que dá azo ao surgimento de todo tipo de novos mestres e gurus, baseando a eficácia das suas "receitas" no poder da "sugestão") ou, pelo contrário, se mergulha o sujeito na angústia (de ter de gozar a todo o custo sem saber como) ou na "culpa" (não porque lhe seja proibido gozar, mas por não gozar suficiente, adequadamente bem...como é suposto ter de se gozar).

Talvez o que falte pôr a circular não seja um autocarro do gozo, mas um eléctrico chamado desejo...


28.1.09

A máquina da avaliação

Afinal, eles querem ou não querem ser avaliados? É uma pergunta que se faz por aí...

Para a opinião pública, cansada de tanta greve e manifestação, o que eles não querem é ser avaliados; já os sindicatos - e demais professores - fazem questão de dizer, quando isso é questão: mas nós queremos ser avaliados!

Seria, talvez, necessário ir um pouco mais longe - ou mais fundo - e perguntar: onde radica esta vontade de avaliar (ou de ser avaliado), esta poderosa máquina retórica que tende a alastar não apenas à educação, mas também à saúde (física ou psíquica) e demais domínios da existência humana?

Em 2004, quando os ventos do furor avaliativo tinham já lançado, em França, as primeiras rajadas, Jacques-Alain Miller (em colaboração com Jean-Claude Milner) dava a seguinte resposta: "(...) pode dizer-se que a avaliação está em marcha desde a emergência do discurso da ciência. A avaliação, por todo o lado, não é um acidente, um avatar, é um momento necessário da grande "cifragem" (chiffrage) do ser que começou, pelo menos segundo Heidegger, com Descartes" (Cf. Voulez-vous être évalué? Paris: Bernard Grasset, 2004, p. 65).

Relativamente a esta razão objectivante, calculadora... que Heidegger (cada vez mais actual) não cessou de evidenciar, somos todos subjugados; os promotores das actuais políticas da educação (saúde, etc.) não menos do que nós, mesmo que finjam, que façam de conta, do alto da sua obstinação, que são mestres e senhores do jogo.

26.1.09

O avesso da banalidade


"Acho que tudo nesse mundo, essa crise imensa do Ocidente, nos leva a dizer que a arte ainda é um caminho possível, que ela é uma trajetória, um modo de pensar, de transformar a realidade e de lidar com o núcleo do sujeito muito mais intenso, veemente e eficaz do que os outros modos de construção da linguagem" (Tunga).

17.1.09

Relação perfeita?

A publicidade diz muito sobre o estado do mundo.

Num spot publicitário em voga, um homem declara para a sua pasta (comprada numa grande loja de venda de produtos informáticos e de escritório): "amo-te"; ao que ela responde: "eu também te amo".

Será esta a "relação" que parece não existir entre homens e mulheres: cada um com a sua "pasta", com o seu quinhão de gozo idiota?...

Num mundo em que os nós se desatam e os laços se quebram facilmente, seremos todos "idiotas"...com pasta?

10.1.09

Como chamar a isto?


Vêem-se por aí homens e mulheres estátua, fazendo profissão de estar imóveis num mundo que acelera dia após dia,  aumentando sempre mais a velocidade.

As empresas buscam "fidelizar" os seus clientes, atribuíndo por exemplo cartões que dão pontos e pontos que dão descontos, num mundo em que os clientes são cada vez mais infiéis. 

Diz-se procurar o crescimento e a beleza interior num mundo onde a cosmética e a cirurgia  plástica se propõem restaurar e rejuvescecer o aspecto exterior. É engraçado ver pessoas bonitas falando de "beleza interior" após se terem sujeitado a uma plástica!

Tenta dar-se a cada um a ilusão de que ele é original,  mestre e senhor da sua vida, de que pode escolher à vontade,  "personalizando" tudo a seu gosto, num mundo padronizado, cada vez mais uniforme, em que nos limitamos a vestir a roupa que nos propõem. Se ela não serve, se não se ajusta ao corpo, a culpa é do corpo. Há que mudar de corpo, fazer dieta, não comer coisas que fazem mal...à roupa que nos querem obrigar a vestir. Eis que nos tornamos rapidamente mestres e senhores da dieta. Somos originais: conformamo-nos à "forma" (no sentido culinário do termo) em que nos vamos (nos vão) enformando. Somos arrastados pela corrente do mundo, pensando estar a remar conta a corrente.

É nesta sociedade de consumo, de hiperconsumo que decidimos (livremente) não  consumir um sem número de coisas porque fazem mal,  engordam  ou prejudicam. Como chamar a isto?

6.1.09

Des(confiança)

Ontem, após a entrevista concedida pelo primeiro ministro, José Sócrates, discutia-se no programa Prós e Contras (RTP1) se ele teria dado confiança aos portugueses, se o seu discurso tinha sido confiável.  

Um dos jornalistas presentes, sem responder claramente à questão, disse a certa altura o seguinte: o primeiro ministro demonstrou um grande poder comunicativo no uso da palavra; por isso, a dra Ferreira Leite (líder do maior partido da oposição) que se cuide!

Estamos longe de um discurso em que a palavra dada, a palavra de honra, era signo de garantia. Num mundo em que a crise de confiança alastrou à própria a econonia, a palavra é simplesmente parte do jogo comunicativo, televisivo. 

A verdade que se cuide! 

Ou não fará hoje a verdade também parte do jogo, da ficção dos media, do grande espectáculo do mundo?


2.1.09

A alma do negócio

Há "segredos" bem guardados. Que o diga o escritor José Saramago que não quis revelar, até agora, o título do livro (romance, conto...?) que está a escrever. 

Pelo contrário, o livro "o segredo" propunha-se, desde o princípio, revelar algo. 

Há títulos assim: prometedores! Mesmo sem abrir o livro, a alma humana já começa a salivar, como diria Pavlov se tivesse "espírito"!

Pela quantidade de arremedos a que foi sujeito (o segredo do segredo, o segredo do segredo do segredo...) parece mesmo que aquilo que fascina mais em coisas deste género não é tanto o "conteúdo" revelado (banal e insípido), mas o significante enigmático que promete abrir as portas da...felicidade.

Daí, talvez, o paradoxo: numa era de absoluto predomínio da ciência, a "ideologia" e o "discurso" correntes não cessam de produzir "crenças" cada vez mais estranhas ao espírito científico. 

Ou, então, a misturar no mesmo prato - como sói fazer-se em experiências culinárias cada vez mais eclécticas - ciência e crendice, ao gosto de cada um.

Haja, ao menos, bom gosto!