29.3.07

Um desejo chamado Europa


No "centro geográfico" da Europa, algures na Alemanha, há um campo de trigo. O seu dono, subitamente famoso, desconhecia que ali, algures no seu campo de trigo, fica situado o centro da Europa. Alguém lhe comunicou o facto, permitindo-lhe entender o que os seus olhos não tinham visto ainda (eis uma boa forma de explicar, às crianças, a diferença platónica entre o sensível e o inteligível: o centro da Europa é uma realidade inteligível, embora não sensível).

Esta "invenção"simbólica (1) de pontos (ou centros) no real tem efeitos sobre o próprio real. No caso presente, o nosso homem, tímido, viu-se de repente lançado para as luzes da ribalta (em particular na Alemanha, onde vários meios de comunicação passaram a assediá-lo). Dá-se aqui algo semelhante ao que Lacan costumava dizer dos elefantes: quando alguém pronuncia a palavra elefante (por exemplo, um caçador), mesmo se ele não é visível, se não está presente, isso acaba por ter efeitos sobre o destino que se abate sobre ele (quer isso implique a morte, a extinção ou a sobrevivência).

Por outro lado, o facto, aparentemente "natural", de existir um "centro" da Europa, acaba por ter pouco de natural e relevar essencialmente de uma "ideologia" ou, até, de uma topo-logia assente na ideia centralista da Europa. Desse ponto de vista, há países mais "centrais", isto é, mais perto do centro, e outros mais periféricos, como Portugal. É interessante como nós próprios temos o hábito de colocar o problema dessa forma: somos periféricos em relação à Europa.

Nesse sentido, poderíamos dizer - não temendo o paradoxo - que a revolução copernicana ainda não conseguiu minar esta ideia centralizadora da Europa (não nos esqueçamos que foi Copérnico, um europeu, quem descentrou o mundo em relação ao sol, embora também ele, apesar de tudo, continuasse a alimentar a sua ideologia centralista). De tal forma é assim, que se discute cada vez mais onde devem situar-se, não apenas o centro geográfico, mas também os centros financeiro, político, etc. da Europa, o que tem gerado, naturalmente, atritos e sintomas diversos.

Pois bem, que seria da Europa se começássemos a pensá-la de um modo, por assim dizer, "atópico", isto é, sem um lugar "central", como uma estrutura perpetuamente descentrada, sem que isso constituísse um problema, causa de mal-estar, e fosse, pelo contrário, sinal da vitalidade própria de todas as coisas que estão vivas, pois, como dizia Nietzsche da criatura humana, a vida é feita de dissonância. Aliás, não tem sido isso a Europa, desde sempre: uma linha de fuga, uma centri-fugação?

Nesse caso, não se discutiria tanto sobre qual ou onde deve ser o "centro" disto e daquilo, ou quais as línguas que devem ter a primazia (perante a babelização cada vez maior da Europa), ou até se deve, ou não, ensinar-se uma "história" comum europeia (segundo a ideia peregrina da ministra da Educação alemã, há algum tempo atrás). Talvez não se falasse tanto da "crise" (do que faz sintoma), visto que a Europa seria o seu próprio sinthoma (2), isto é, o seu próprio descentramento. Em vez de queixar-se da falta de um centro, saberia o que fazer (de novo) com isso.

António Guerreiro, no último número do Expresso (Actual, nº 1795, 24 de Março de 2007), chamando a atenção para esta falta de "centro" (de figura definida, de identidade...histórica, geográfica e cultural) da Europa, relembra a sua origem mítica, segundo a narração de Heródoto: Europa, a bela princesa arrancada à sua terra natal, no continente asiático, é levada para uma terra desconhecida, ainda sem nome, que se situa a ocidente, face à Ásia. É aqui que António Guerreiro acrescenta um comentário que nos parece essencial: "Nesta deslocação forçada, a terra da Europa não surge ainda senão como horizonte e - poderíamos dizer - como desejo. É um desejo de ocidentalidade que nunca mais deixará de mover a Europa" (p. 10). Não devemos esquecer, porém, que este desejo é colocado no lugar do Outro: a Ásia, neste caso.

Eis o que Wim Wenders diz de forma explícita num artigo intitulado: "Dando à Europa uma alma" (op. cit., pp. 11-17): "Os que vivem há muito tempo na Europa parecem cansados dela. Os que não se encontram lá, que vivem noutro lado, querem chegar aqui a todo o preço e juntar-se a nós. O que é isso, então, que alguns têm e já não querem, e por que outros anseiam tanto?"

Parece, então, que é só vista de fora, do lugar do Outro, que a Europa ganha consistência e identidade. O desejo que move a Europa é, assim, um desejo do Outro (não só porque vem dos outros, mas também porque é desejo de outra coisa). Seremos nós, europeus, capazes de agarrar, de novo, a seta do desejo que nos des-centra?

(1) Mesmo quando se trata de "geografia", a determinação de um "centro" depende de coordenadas, de um enquadramento ou de uma rede simbólica.

(2) Retomo aqui um termo do último Lacan.

2 comentários:

Igor Lobão disse...

Olá Filipe.

O que diz é deveras interessante.
Essa "centri-fugação", como oportunamente lhe chamou, conduziu a Europa até a uma periferia que dificilmente se instituirá como extima (no sentido de uma "centralidade" exterior), como é o caso de Portugal, mas também à Turquia, que me parece poder situar qualquer coisa da ordem dessa extimidade. Turquia que, curiosamente, acaba por ser um limite ao próprio desejo de ocidentalidade da Europa.

O caso relacionado com o "rapto" dos soldados ingleses acaba por ser dessa posível "extimidade"(entre outros exemplos), na medida em que, como noticiam os meios de comunicação social, o Irão considera para já a Turquia como o seu interlocutor para com 'um' Outro que é a Europa.

Abraço,

Igor

spring disse...

a Europa necessita de ter uma identidade, o desejos de ser Europeu
uma boa Páscoa
paula e rui lima