23.3.07

Elogio da intolerância


Uma juíza alemã decidiu não conceder divórcio a uma jovem, de origem marroquina, que apresentara queixa num tribunal alemão contra o marido por violência doméstica, alegando que o Alcorão permite esse tipo de comportamento. O caso está a gerar grande polémica na Alemanha e não só.

Mas, afinal de contas, o que fez a juíza alemã, a não ser limitar-se a agir segundo a ideologia corrente que consiste em defender a tolerância multi-cultural a todo o preço(1)? Ela limitou-se a realizar, a passar ao acto, aquilo que outros defendem, ao nível do pensamento, sem terem a coragem de o pôr em prática, recuando perante o "horror" do acto. Nessa medida, poderíamos dizer que a leitura (literal) de certas passagens do Alcorão, sobre a permissão dada ao marido para espancar a mulher em certas circunstâncias, efectuada pela juíza alemão, tem algo de perverso, mas só na medida em que constitui, que realiza, que dá a verdade do pensamento neurótico dos defensores da tolerância. Onde outros se limitam a pensar (faz o que eu digo, mas não o que eu faço), ela agiu em consonância (2). E isso, essa verdade revelada - como acontece quando um sonho se aproxima demasiado do seu núcleo real e se transforma em pesadelo) - mostrou-se intolerável. Para além do limite do fantasma, a ideologia da tolerância revela-se intolerável.

Eis porque Slavoj Zizek contrapunha, a uma ideologia da tolerância, um "elogia da intolerância" (Cf. Slavoj Zizek - Elogio da Intolerância. Lisboa: Relógio D'Água, 2006).

(1) Essa ideologia (da diferença e da tolerância), como mostrou muito bem Slavoj Zizek, está presente até nos actuais desenhos animados. Em "A Terra Antes do Tempo (The Land Before Time), de Steven Spielberg, há uma passagem que diz: "É preciso de tudo/Para fazer um mundo/Miúdos e graúdos/Gordos e Franzinos/Para encher este belo planeta/De amor e alegria/Para que a vida seja melhor/Amanhã e depois/É preciso de tudo/Não há dúvida nenhuma/Espertos e tolos/De todos os tamanhos/Para fazer todas as coisas/Que precisam de ser feitas/Para alegrar a nossa vida". Se formos consequentes com semelhante linha de raciocínio, até onde nos poderá levar esta "apologia da diferença"? (Cf. Slavoj Zizek, A Subjectividade por Vir, Lisboa, Relógio D'Água, 2006, pp. 57-58.

(2) A juíza havia alegado que no ambiente cultural de origem do casal "é habitual o homem ter o direito de castigar a mulher".

3 comentários:

spring disse...

olá

se gostas de cinema vem visitar-nos em

www.paixoesedesejos.blogspot.com

todos os dias falamos de um filme diferente

gostámos imenso do teu blogue, vai constar dos nosso favoritos.
uma abraço cinéfilo
paula e rui lima

Filipe Pereirinha disse...

O cinema é um dos meus grandes des(gostos), pois, gostando muito, não tenho podido ultimamente, por razões diversas, satisfazer plenamente esse gosto.
Obrigado pelo convite.
F.P.

Anónimo disse...

A participação dos indivíduos em sistemas culturais pode ser averiguada? Partindo de quais elementos? Parece-me evidente que isso é auto-declaratório. Se a esposa processa o marido, ela vai de encontro ao Corão. Ela ATESTA não participar no mínimo deste dado da sua cultura.

Também parece ingênuo imaginar que as culturas não são dinâmicas, não têm tensões internas, que seus indivíduos não se comunicam com a realidade que os circunda. Uma mulher que vive o contraste de duas culturas pode muito bem optar, ao menos parcialmente, por concordar ou discordar dos novos valores que se lhe apresentam.

Mas então uma juíza pode lhe vetar este direito? Com base no quê? O argumento da juíza é uma contradição em termos. É como afirmar "não, você não se sente agredida ou pensa que esta agressão é legítima" enquanto a vítima afirma o contrário. Um diálogo assim irritaria o mais paciente cristão.

Por fim, penso que é possível que esta decisão seja política, dado o contexto de polêmica sobre a inclusão da Turquia na UE (cujo membro mais afetado seria, talvez, a Alemanha). Parece, sim, um "jogar com a arquibancada", e, sem dúvida, com a intolerância da arquibancada.