23.3.06

Lisboa@com.fusão


Que um país esteja a mudar não se percebe apenas pela transformação da sua paisagem física e mental, mas também pelas mudanças na sua "paisagem" sonora: a música que se faz e escuta, o timbre e o sotaque das vozes, os tons, os ritmos...

Quem habita quotidianamente uma paisagem não se apercebe tão facilmente dessa mudança como alguém que vem de fora, trazendo um olhar ainda não completamente saturado de hábito.

É o caso, por exemplo, de Ariel de Bigault, uma parisiense que acompanhou, desde os anos 70, essa profunda mudança na "paisagem" portuguesa (sonora, arquitectónica ou outra), em especial a de Lisboa, onde vem frequentemente.

Lisboa@com.fusion é um disco que reune 17 artistas musicais, alguns mais representativos ou conhecidos que outros (e mesmo os mais conhecidos, como Madredeus, por exemplo, aparecem sob um aspecto familiarmente estranho), mas cada um deles ajudando a construir uma "paisagem" sonora que Ariel de Bigault, que fez a selecção dos artistas incluídos na colectânea e escreveu os textos, caracteriza - e bem, a meu ver - como sendo de "fusão".

Lisboa é cada vez mais uma com-fusão sonora, onde os sotaques diversos da língua portuguesa do espaço lusófono(Portugal, África, Brasil...) - neste ponto, ao menos, o malogrado Agostinho da Silva foi "visionário" - coabitam com outras línguas e outros sotaques, gerando, em conjunto alíngua (como escrevia Lacan) em que nos vamos des-dizendo.

Se "os sotaques enriquecem a língua portuguesa" - como escreveu Ariel de Bigault na introdução - então eu gostava de destacar, entre todas, uma interpretação de Lula Pena, logo a abrir o disco, de um repertório português e brasileiro, "sodade" e "rosinha dos limões". É o "sotaque" feito obra de arte.


21.3.06

Dia mundial da poesia


A poesia era a "ciência" de um tempo em que não havia ciência; num tempo em que (só) há ciência, o que é a poesia?

A poesia é a respiração da língua.

Toda a língua é morta (é dicionário) até que cada um de nós a faz respirar boca a boca, singularmente.

Num tempo em que a alma se retrai perante a linguagem fria da cifra, a inutilidade sagrada da poesia há-de ensinar-nos outra vez a respirar!

Ao sindicato dos poetas - se o houvesse! - diria, hoje, neste dia mundial da poesia: coragem, só mais um pouco de alma!

20.3.06

Uma arte de morrer


Com a morte de Fernando Gil, no Domingo, o pensamento em geral e a filosofia em particular ficaram mais pobres.

Recordo-me de ter escutado da sua boca, não há muito tempo, numa entrevista que o filósofo deu a um canal de televisão, o seguinte: interesso-me cada vez mais pelo que está antes e depois da ciência. Para alguém que dedicou grande parte da sua vida a reflectir sobre a ciência (Provas, Mimesis e Negação, etc.) não deixa de ser paradoxal.

Mas talvez o paradoxo seja aparente: com efeito, o que lhe interessava, desde os primeiros trabalhos, na ciência não era propriamente "científico", mas outra coisa: a prova, de que esta é capaz, a evidência para que aponta, mas que a transcende, a convicção que gera(é curioso que muitos dos testemunhos que pude ler hoje no jornal Público salientavam precisamente esse traço: "um homem de convicções fortes"), tal como veio progressivamente a evidenciar-se em trabalhos posteriores e mais recentes como: Tratado de Evidência, Modos de Evidência ou Acentos. E não se pode falar de "convicção", por exemplo, sem fazer entrar em jogo, ao lado do objecto científico, aquilo a que chamaria - não me ocorre outra palavra - um sujeito.

O que está antes e depois da ciência é também a vida e a morte. Fernado Gil, costumava dizer a propósito, parafraseando o velho Platão, que a "filosofia é uma arte de morrer".

Não é a morte, afinal, o último acento da vida?

A minha sentida homenagem!

14.3.06

Os nomes do Big-brother


Há quem tema ou acuse o motor de pesquisa Google de estar a tornar-se num novo Big-brother devido à quantidade de informação "privada" que tem vindo a acumular sobre todos nós à escala mundial.

Agora, porém, este motor de pesquisa foi a tribunal, na terça-feira, para defender os «direitos dos seus utilizadores», recusando-se a entregar as listas de dados exigidas pelo Departamento de Justiça dos EUA.

As autoridades norte-americanas exigiam que o maior motor de busca na Internet entregasse todos os dados disponíveis no sentido de melhorar o policiamento no ciberespaço. A empresa norte-americana afirmou que aceitar esta exigência iria pôr em causa a privacidade dos seus clientes e comprometer os serviços prestados.

Parece haver, por enquanto, um resto de pudor!

Ou será apenas um poder a fazer frente ao Outro?

7.3.06

Alfinetadas


A capa faz lembrar os velhos tempos em que as paredes serviam de suporte a escritos rebeldes e panfletários. E por que não dizer - sem medo da "traição" das palavras - que há algo de assumidamente "rebelde" em cada uma das "alfinetadas" (coups d'épingle) que constituem este Anti-livro negro da psicanálise!

Não se trata aqui de um estilo "defensivo" (como se a psicanálise estivesse ameaçada na sua produtividade ou fulgor criativo), mas antes um Contra-ataque (segundo o título que a revista La Règle du Jeu deu ao seu número de Janeiro último). Não um "contra-ataque" directo, imaginário, ao "Livro negro" - segundo o que o título pode sugerir - ou mesmo a este ou àquele autor, a este ou aquele relatório, a esta ou aquela medida, mas aos "fundamentos" (epistemológicos, clínicos, políticos e éticos) que estão na base dos recentes "ataques" à psicanálise.

Um a um, com ironia e humor, são desmontados os vários argumentos que sustentam a superioridade performativa de certas "práticas", designadamente as terapias cognitivo-comportamentais, relativamente à psicanálise.

E sobretudo, fica-se com a sensação, depois de ler os diversos artigos, que não está em causa simplesmente a oposição entre dois tipos de práticas "terapêuticas", mas, acima de tudo, de dois "conceitos" incompatíveis do ser humano.

A escolha é de cada um enquanto o mal (não) é de todos!