"Anda aí mão criminosa"! É uma expressão que costuma ouvir-se de forma recorrente, todos os verões, a propósito da origem dos incêndios que vão consumindo impunemente este país. Não se sabe muito bem o que é a tão famigerada "mão criminosa", pois não há rosto(s) nem atribuição de responsabilidade(s). A "mão criminosa" é uma coisa vaga e difusa que não quer dizer nada e diz tudo ao mesmo tempo. Pode ser a mão de "qualquer um" e de "ninguém". Um estranho "objecto" que se autonomizou, desgarrado de todo e qualquer "sujeito". Só um sujeito (ético) pode responder pelo faz, não uma mão. Uma mão faz e...pronto. Talvez por isso, mesmo se todos os anos, em alturas críticas, se ouve dizer que tal e tal "sujeito" foram detidos, os incêndios não páram porque a "mão criminosa" (inimputável, irresponsável) continua à solta, não se quixando da falta de acessos e de meios.
Desde criança que oiço a mesma lamúria e quixume: "falta de acessos e de meios". O país arde porque faltam acessos e meios. Não seria já tempo de agir, dando meios aos que deles precisam e constuindo os acessos que são necessários, em vez desta eterna e inconsequente lamúria?
Em vez disso, ano após ano, o país vai ardendo (não sei como resta ainda país para arder!) e a queixa repete-se: "falta de acessos e de meios".
A televisão mostra sem cessar, de uma forma cada vez mais patética, anódina e repetitiva, como se de um show se tratasse, os incêndios e a "discussão" em torno deles (não a reflexão que leva a agir) e o que se ouve, até à exaustão, é o disco riscado do "discurso corrente" e vazio: queixume e lamúria, falta de acessos e de meios. Ao mesmo tempo, não deixa de ser curioso - e sintomático - que quando se tratou de construir acessos e de dar meios para os "dez estádios", grande parte deles agora inúteis e vazios, no momento esperado as coisas funcionaram. Porquê? Quando quando se trata da "imagem" que queremos mostrar para os outros, os "de fora", para "inglês ver", como se diz, as coisas fazem-se, aparecem feitas. Quanto ao resto, mato e floresta, espaço verde, "deixai arder!", como eu ouvia, também na minha infância, aos burgessos do meu país. É estranho este gosto pelo fogo, por ver arder, queimar...que tanto seduz os portugueses em geral (talvez por isso a "mão criminosa" não tenha rosto porque estamos todos, de uma forma ou de outra (inconscientemente), implicados. Não há festa (romaria, procissão, etc.) que não tenha "fogo". Lembro-me que na minha infância havia uma altura do ano em que os rapazes costumavam brincar às "fogueiras". Há regiões em que se queima o madeiro (do senhor). Em Fátima queimam-se velas. Fazem-se "queimadas" noutros sítios. Parece que mantemos - de forma "críptica" - um "temor" ancestral de que o fogo (pré-histórico) se apage e nos deixe literalmente às escuras. Enquanto há fogo, há esperança. Não sabemos de quê, mas não importa, pois nada importa verdadeiramente.
Para que serve falar (em tom de quixume, lamúria e impotência) ou mostrar (como faz a televisão) as imagens dos incêndios intermináveis se "real-mente" isso não leva a nada, não produz efeitos (a não ser aumentar a "depressão"), não faz acontecimento, não se inscreve (José Gil)?
Enquanto isso, o país continua a arder, ano após ano, Verão após Verão, até que não restem dele senão cinzas. Agora, até já se dá uma ajuda à "mão criminosa", avisando, na televisão, quais os dias e regiões mais propícios (com maior risco) para atear os incêndios. E as televisões garantem que meios e acessos não faltarão para dar cobertura mediática a tudo. Enquanto houver algo para arder, o espectáculo está garantido.
4.8.05
2.8.05
A bolsa ou a vida
Um dilema está a encostar à parede as sociedades democráticas: ou mais liberdade ou mais segurança. É uma das formas da "alienação" (o termo é de Lacan) contemporâneas.
Mais liberdade implica menos segurança, logo, no limite, menos liberdade, visto que não há plena liberdade sem segurança.
Mais segurança, porém, implica, desde logo, menos liberdade, pois não há verdadeira liberdade num ambiente "restritivo", vigiado, controlado.
Daqui resulta que quanto maior é a liberdade, menor é a segurança e quanto maior é a segurança, menor a liberdade.
O que começa a estar em cima da mesa, actualmente, é a questão de saber em que medida e até que ponto os cidadãos estão dispostos a sacrificar uma "bolsa" da liberdade para se sentirem seguros ou, pelo contrário, em sacrificar uma "bolsa" de segurança para se sentirem livres.
O problema é que agora as coisas são bem menos claras do que na dialéctica hegeliana do senhor e do escravo. Agora, propriamente falando, não há dialéctica: sacrificando a liberdade, por exemplo, em nome de mais segurança, nada nos garante que o preço a pagar não seja, paradoxalmente, mais insegurança. Há o perigo, com efeito, de que ao passar a vigiar-se tudo e todos, cada um de nós se acabe por tornar, para si próprio, um posto de vigia.
Mais liberdade implica menos segurança, logo, no limite, menos liberdade, visto que não há plena liberdade sem segurança.
Mais segurança, porém, implica, desde logo, menos liberdade, pois não há verdadeira liberdade num ambiente "restritivo", vigiado, controlado.
Daqui resulta que quanto maior é a liberdade, menor é a segurança e quanto maior é a segurança, menor a liberdade.
O que começa a estar em cima da mesa, actualmente, é a questão de saber em que medida e até que ponto os cidadãos estão dispostos a sacrificar uma "bolsa" da liberdade para se sentirem seguros ou, pelo contrário, em sacrificar uma "bolsa" de segurança para se sentirem livres.
O problema é que agora as coisas são bem menos claras do que na dialéctica hegeliana do senhor e do escravo. Agora, propriamente falando, não há dialéctica: sacrificando a liberdade, por exemplo, em nome de mais segurança, nada nos garante que o preço a pagar não seja, paradoxalmente, mais insegurança. Há o perigo, com efeito, de que ao passar a vigiar-se tudo e todos, cada um de nós se acabe por tornar, para si próprio, um posto de vigia.
1.8.05
É a vida!
É sabido que em Portugal se lê pouco.
Nos últimos tempos, cita-se muito determinados livros e autores (até aquelas personagens que só in extremis, com uma arma apontada à cabeça, leriam um livro, os citam). Um desses autores é José Gil e o livro, "Portugal, hoje - o Medo de Existir". Pelo facto de serem muito citados, criou-se a ilusão de que em Portugal, hoje, se lê mais do que outrora.
Ilusão! Tal como Saramago, antes (graças ao Nobel da Literatura), também José Gil (graças ao "Nouvel Observateur", que o colocou numa lista restrita dos maiores pensadores) e o seu livro passaram a citar-se como quem diz o nome de uma marca famosa, de prestígio, ou meio exótica, sem que dela se possa "gozar" efectivamente. Cita-se o nome da "marca", convencido, lá no fundo (pois o inconsciente não conhece o tempo, mantendo sempre as mesmas crenças) de que o nome é a coisa e basta, por isso, nomeá-la para a possuir.
Saramago (literatura), Gil (pensamento) e Mourinho (futebol), sem terem quase nada em comum - sobretudo os dois primeiros em relação ao último - têm, no entanto, para aqueles que os "citam" sem os lerem (talvez o mais lido até seja mesmo Mourinho), o mesmo valor de "eu-ideal" (que os reflecte imaginariamente) e de "ideal-do-eu" (o que gostariam de ser, que os mobilizaria...se isso não desse muito trabalho). Afinal, todos eles são, antes de tudo, "mouros" de trabalho.
Nos últimos tempos, cita-se muito determinados livros e autores (até aquelas personagens que só in extremis, com uma arma apontada à cabeça, leriam um livro, os citam). Um desses autores é José Gil e o livro, "Portugal, hoje - o Medo de Existir". Pelo facto de serem muito citados, criou-se a ilusão de que em Portugal, hoje, se lê mais do que outrora.
Ilusão! Tal como Saramago, antes (graças ao Nobel da Literatura), também José Gil (graças ao "Nouvel Observateur", que o colocou numa lista restrita dos maiores pensadores) e o seu livro passaram a citar-se como quem diz o nome de uma marca famosa, de prestígio, ou meio exótica, sem que dela se possa "gozar" efectivamente. Cita-se o nome da "marca", convencido, lá no fundo (pois o inconsciente não conhece o tempo, mantendo sempre as mesmas crenças) de que o nome é a coisa e basta, por isso, nomeá-la para a possuir.
Saramago (literatura), Gil (pensamento) e Mourinho (futebol), sem terem quase nada em comum - sobretudo os dois primeiros em relação ao último - têm, no entanto, para aqueles que os "citam" sem os lerem (talvez o mais lido até seja mesmo Mourinho), o mesmo valor de "eu-ideal" (que os reflecte imaginariamente) e de "ideal-do-eu" (o que gostariam de ser, que os mobilizaria...se isso não desse muito trabalho). Afinal, todos eles são, antes de tudo, "mouros" de trabalho.
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