26.2.10

A coisa vai continuar a aquecer...

Há alguns anos, dois cientistas de renome (Alain Sokal e Jean Bricmont) propuseram-se denunciar uma série de "imposturas intelectuais", isto é, de erros, abusos ou mistificações de conceitos científicos, provenientes em particular da física e da matemática, por parte de conhecidos intelectuais franceses (filósofos, sociólogos, psicanalistas...) com grande sucesso e acolhimento nalgumas universidades americanas.

O rastilho da bomba que então explodiu foi ateado na Primavera de 1996, quando uma conceituada revista americana - a Social Text - publicou um artigo com o título: "Transgredir as fronteiras: rumo a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica". Em breve, a citada revista teve de reconhecer que o artigo em causa era, afinal, uma paródia, uma sátira forjada pelo próprio Sokal para denunciar as diversas extrapolações abusivas das ciências exactas levadas a cabo, nomeadamente, por um certo ""pós-modernismo" " que tende a "relativizar" o valor da objectividade científica.

Temos, portanto, de um lado, a objectividade da ciência e a honestidade dos cientistas dessa área; do outro, a impostura e a desonestidade intelectual dos demais.

Esta ideia está de tal modo enraizada, disseminada que ninguém se atreve hoje a contestar uma informação quando ela se apresenta com o selo de garantia da ciência "exacta". Os próprios "abusos" denunciados por Alain Sokal e Jean Bricmont seriam porventura inconcebíveis se a ciência não desse uma tal garantia. Ela atrai, serve de referência a todos aqueles que pretendem revestir de "objectividade", de "cientificidade" os seus procedimentos.

De um lado, portanto, a objectividade da ciência exacta; do outro, a impostura...

Era isto, pelo menos, o que rezava a história até há alguns meses atrás quando alguns hackers conseguiram ter acesso a uma série de e-mails trocados entre importantes cientistas de uma prestigiada universidade inglesa (East Anglia) onde funciona um dos mais reputados centros de investigação do mundo sobre "alterações climáticas". Os e-mails em causa mostravam que os cientistas em questão manipularam dados para reforçar o seu argumento de que o famigerado "aquecimento global" é um facto inconstestável e é causado pela acção humana. O que tem servido, muitas vezes, para instigar uma certa ecologia "desumanizada"...

Contra tais argumentos...não há factos! Sobretudo quando os argumentos têm selo de garantia da ciência exacta! Isso permitiu, durante anos, escamotear, manipular e falsear toda uma série de dados sobre o "aquecimento global",  impedindo  nomeadamente a publicação de outros argumentos em sentido contrário nas revistas científicas de prestígio internacional.

Será que vamos assistir, em breve, a uma nova edição do livro de Sokal e Bricmont (Imposturas Intelectuais - Parte II), agora incidindo sobre os "abusos" no domínio da sacrossanta ciência "exacta", levada a cabo por reputados e honestos cientistas? Será esta a prova de que os cientistas, mesmo quando são "exactos", nem sempre dizem "toda a verdade"? Aliás, dizer "toda" a verdade é impossível por estrutura ao ser falante. E os cientistas, por mais que tentem reduzir o real à letra (para aquém ou além do afecto) também são "afectados" por outros discursos e interesses (para aquém ou além da ciência).

Queiramos ou não, o mundo está mesmo a aquecer!

19.2.10

Fazer-se olhar

O que aconteceu à deflação da palavra (já ninguém dá a sua palavra) no nosso tempo? Proponho: a inflação do olhar. Vivemos numa "civilização do olhar" (Gérard Wajcman)

Tudo devém objecto de "olhar" desde o mais íntimo e privado até ao mais público: a videovigilância, a imagiologia cerebral, a tele-realidade...

Inumeráveis dispositivos que visam tornar-nos completamente visíveis e transparentes. E cada um de nós participa activamente, festivamente, nessa desocultação da face e da alma.

A ciência e a técnica fabricam novos deuses omnividentes (após a "morte de Deus"), um novo Argos dotado de milhões de olhos que nunca dormem. Outrora, apenas os criminosos eram objecto de vigilância, hoje somos todos.

O "olhar global" infiltra cada pedacinho da nossa existência, do nascimento à morte. Novas ferramentas são criadas todos os dias para que cada um saiba o que todos os outros andam a fazer: facebook, twitter, buzz, etc., etc.etc. Tudo visível, tudo registável.

Se ver é uma arma de poder, então cada um de nós participa neste novo poder do "olho absoluto". Uma nova ideologia do "hipervisível".

Como resistir a tal uma omnivisão se cada um de nós é cada vez mais sujeito, como diria Étienne de La Boétie, a uma "servidão voluntária"?

11.2.10

Quem é Michel Onfray?

Um filósofo contemporâneo. Vivo. Jovem. Tem apenas 51 anos, salvo erro. É talvez um dos filósofos mais lidos de França, um país onde ainda se lê...filosofia. Há mesmo revistas de filosofia que se vendem em quiosques. Procurei por todo o lado, em Portugal, mais concretamente em Lisboa, em busca de uma delas (Philosophie Magazine) e só encontrei Playboy, Maxmen e outras que tais em grandes quantidades. Não está mal... e tem, aliás, algo a ver com este filósofo jovem, hedonista, libertário e defensor de um "erotismo solar".

Confesso que esta personagem me é de alguma forma simpática. Habituado a um país de "fado" e "fadistas" (de fatalistas de toda a laia), cantando a eterna ladainha do sofrimento, do ressentimento, da vitimização - tudo nos serve para chorar, lamentar e descrer de nós -, do "sacrifício" (agora erigido, por alguns políticos, em nova religião nacional), é bom saber que há alguém que se propõe afirmar a vida (à maneira de Nietzsche), "desteologizar" e "descristianizar" a existência (no que ela tem de paixão pelo "valor" do sofrimento) e de empreender uma crítica a toda a "razão dietética"...

Além disso, para o bem ou para o mal, ele teve de "esculpir-se" a si próprio, não herdando (quase) nada para além de uma história que parecia ter todos os condimentos para não não dar certo (tal a série de abandonos sucessivos: a avó que abandona a mãe, a mãe que o abandona a ele...num orfanato dirigido por padres salesianos, onde viveu, ou "morreu", segundo conta, quatro anos de Inferno)...

Apesar disso - quem o diz é o próprio - a filosofia salvou-o, permitindo-lhe viver. A filosofia que recupera aqui o sua vertente prática "terapêutica", como meio para viver...melhor, antes de se transformar numa especulação demasiadamente abstracta.

É por isso que Michel Onfray se propõe recuperar muitos dos filósofos "abandonados" pela história oficial da filosofia, propondo uma "contra-filosofia" (Cf. La Puissance d'exister, Grasset, 2006). Uma filosofia do avesso, por assim dizer. Levantando do chão, como diria Saramago, todos aqueles que a tradição filosófica (de Platão a Heidegger) deixou cair.

Para isso, criou sozinho uma Universidade Popular: livre, aberta a todos, sem burocracias (ai de nós, atolados cada vez mais em normas, legislações, avaliações...), sem elitismos balofos, movida tão pelo pelo "gosto" (também no sentido culinário do termo, ele que escreveu um livro que se chama: "A razão gulosa - filosofia do gosto"); enfim, um lugar onde reina o prazer e a descontracção. É isso possível? Michel Onfray mostrou, ao longo de mais de dez anos, que (pelo menos em França) é ainda possível.

Por fim, dá gosto ler um autor que escreve muito (mais de trinta livros em poucos anos), mas sempre com uma agilidade, uma frescura assinaláveis. Dá vontade de ler, de voltar a ler.

Pois bem, este filósofo propôs-se recentemente, no curso da sua Universidade Popular, tomar Freud como o seu inimigo e desmontar as suas ideias. Confesso que fiquei algo desiludido ao ler alguns dos argumentos que ele desfiou na seu debate com o psicanalista Jacques-Alain Miller: dizer que Freud era "cocainómano", por exemplo, não tem novidade e é irrelevante; além disso, Freud não esperou que viessem os críticos denunciar os seus "erros", pois ele foi o primeiro a reconhecer grande parte deles.

Já sou mais sensível à denúncia de um certo pessimismo (alicerçado, por exemplo, na "Pulsão de morte") que parece emanar da obra de Freud. Como se a cultura do "sofrimento" (o "cristianismo" do sofrimento) continuasse a laborar, por outros meios, na teoria e na prática freudianas. Desse ponto de vista, ante o projecto de "descristianização" da  vida e da existência, não deixa de haver aqui uma certa coerência.

Mas tudo isto em nome de quê?

Não pude deixar de estremecer ao ler a seguinte frase no seu livro "La puissance d'exister": "(...) a conclusão impõe-se: nós somos o nosso cérebro" (p. 239). Mais arrepiado fiquei quando percebi que ele era, finalmente, um dos adeptos do Livro Negro da Psicanálise (Éditions les Arènes), apesar de não estar de acordo com muitas coisas que aí se diziam.

Será este o desfecho de uma filosofia que se pretende libertária, hedonista, descristianizada: a rasura da "singularidade" em nome dos novos imperativos generalistas, uniformizadores? A ser assim, como dizia Clotilde Leguil numa "Carta aberta a Michel Onfray" (Le Nouvel Âne, nº 10, pp. 36-39): "a psicanálise - essa mesma que Freud inventou - não se tornará jamais a regra, visto que, por natureza, ela é feita para convidar cada um a não renunciar a ser uma excepção."

5.2.10

Uma nova era?

A psicanálise sempre foi objecto, praticamente desde o seu início, de uma série de críticas e objecções; hoje, porém, estas assumem um carácter massivo e que sobe de tom a cada dia que passa.

Porquê atacar Freud e a psicanálise com tal virulência?

Haverá com certeza inúmeras e bem fundadas razões para que tal aconteça: umas de natureza epistemológica (invocando que ela não é ciência), outras religiosa (visto que contribuiu, com a sua quota-parte, para a dessacralização do mundo e da sexualidade), outras, enfim, de natureza "terapêutica" (apelando aos erros ou à ineficácia do seu método).

Eu acrescentaria a estas razões (cada uma delas com a sua parcela de verdade) uma outra, digamos, de natureza ao mesmo tempo social e subjectiva: numa era de desculpabilização generalizada, a psicanálise é tida, por muitos, como um dos últimos redutos da culpa, da culpabilidade, da culpabilização, da responsabilização dos sujeito por aquilo que de mal lhe acontece.

É por isso, talvez, que algumas terapias (cognitivas e comportamentais, por exemplo) e algumas ciências (genética, neuro-biologia...), aliviando o sujeito do peso da subjectividade em prol dos comportamentos, dos genes e dos neurónios, parecem tão ao gosto do tempo. Perante a angústia do real, a deslocalização da culpa para a máquina biológica, por exemplo, tranquiliza provisoriamente o indivíduo, aliviando-o do fardo de ter de escolher ou de lidar singularmente com as escolhas (mais ou menos forçadas) da sua existência.

Há algo de libertador - um certo ganho, por que não dizer? - em semelhante postura. Tal como acontece num outro domínio com grande adesão nos tempos que correm, o sujeito sente-se por assim dizer mais leve, mais zen... Mas a que preço?

Liberto da subjectividade, isto é, da sua maneira singular de fazer face, de haver-se com o real, o indivíduo estará cada vez mais sujeito a respostas formatadas para perguntas pré-definidas. Não será livre de questionar a própria pergunta, a forma e a substância da mesma, mas apenas a adequar-se à questão já formulada. A dar a "boa" resposta; a ser corrigido em caso contrário. Respostas inesperadas, imprevisíveis, ou que não cabem nos parâmetros e itens previamente definidos, serão consideradas erradas ou, simplesmente, a descartar.

Entrámos a todo o vapor na era do questionário e da grelha, pelas quais todos os nossos comportamentos (do público ao privado) serão avaliados de agora em diante. O estreitamente do mundo, da vida, das possibilidades...parece inevitável. Chegará uma altura em que as próprias exigências e reivindicações dos indivíduos (se é que já não chegámos aí) se conformarão voluntariamente a tais grelhas e parâmetros. Como entender, por exemplo, a recente manifestação dos estudantes do ensino secundário exigindo, entre outras coisas, educação sexual nas escolas? Perante a angústia do real sexual, terreno de encontros e desencontros, prazeres e desprazeres, será que eles exigem a boa (e finalmente única ou uniformizada) resposta? A resposta que lhes dirá, finalmente, como fazer amor de modo salutar, seguro, sem risco, tudo muito bem empacotado, para o bem se si próprios e dos outros?

Resta a cada um saber se quer alinhar - ou de que modo quer alinhar, inscrever-se - num tal dispositivo.

Ou talvez nem isso reste, a ser verdade, como se diz por vezes, que o sujeito não é responsável pela sua existência, uma vez que é a máquina biológica que o comanda, que o decide, que faz por ele as suas escolhas vitais e existenciais.

4.2.10

Na ordem do dia

A avaliação está na ORDEM do dia.

É já neste próximo Domingo que terá lugar, em Paris, um encontro sobre o tema: Évaluer tue.

Paralelamente, o nº 10 da revista "Le Nouvel Âne" faz-se inteiramente eco desta questão.

É possível, desde já, aceder ao Editorial da revista, escrito por Agnès Aflalo.

Aqui fica um excerto:
“La  culture de l’évaluation repose sur l’idée simple qu’il n’y a  presque pas de différence entre l’humain et l’objet. Simple  question de qualité à chiffrer. La qualité est alors devenue le  maître-mot au nom duquel la traque des vivants a commencé,  car la qualité, qui fait la différence, c’est la vie elle-même.”


É uma questão que interessa a todos, mesmo que apenas alguns pareçam interessados nela


Pode encomendar-se a revista directamente por Internet.

Uma nova alegria?

Numa época triste como esta, em que tudo parece ficar cinzento e "ordenado" (desde tempos remotos sempre houve, aliás, quem pretendesse, por todas as boas razões do mundo, submeter o CAOS à ORDEM), poderá a psicanálise trazer uma NOVA ALEGRIA?

Em tempos, foi também uma certa DESORDEM subjectiva que me fez entrar em análise. E nem o método cartesiano, apelando à CLAREZA e à DISTINÇÃO, foi capaz de  fornecer REGRAS PARA A DIRECÇÃO DO ESPÍRITO que me ordenassem adequadamente o  pensamento e a vida!

O pensamento é um bicho estranho! Dá voltas e mais voltas. Ao longo de vários anos procurei ORDENÁ-LO, pô-lo na ORDEM. Escovei ideias e palavras em busca de um estilo limpo. E não me envergonho completamente do resultado.

Mas a vida é assim! A Minha psicanálise não me trouxe mais gosto pela ORDEM; deixou-me, pelo contrário, um pouco menos limpo, menos escovado, mais desordenado. É por isso que eu sinto, numa altura em que todos exigem ou se precipitam, correndo atrás de uma palavra-de-ordem (por aqui se vê o poder do que Lacan chamava o significante-mestre), em direcção à ORDEM (dos médicos, dos psicólogos...quem sabe se um dia dos professores, dos psicanalistas, dos filósofos, pois vê-se de tudo neste mundo!), que DEFINITIVAMENTE quero ser desordenado, tal como é SINGULARMENTE cada um de nós!

Quero que a minha luta, o meu combate não seja pela ORDEM (mesmo se também não pretende ser pelo CAOS), mas pela SINGULARIDADE!

E isso, acreditem, traz-me uma NOVA ALEGRIA!