29.11.06

A tentação do nada

O "nada" pode ser muitas coisas. Basta escrever, por exemplo, num qualquer motor de busca a palavra "nada", que logo vêm à rede uma série de coisas.

O número de Novembro de 2006 (Hors-série) da prestigiada revista Magazine Littéraire, é inteiramente dedicado ao tema do "nihilismo" (do latim, "nihil") e tem como subtítulo: "a tentação do nada" (la tentation du néant). É fácil verificar, pela quantidade (e qualidade) dos artigos consagrados ao "nihil-ismo", que o "nada" está longe de se reduzir a nada.

Num outro domínio, também o último número da revista "Actual", do Jornal Expresso (25 de Novembro de 2006), consagrava duas páginas (24-25) a uma estranha "doença" (anorexia) onde o "nada" tem a sua importância. Pela forma como se obstinam na manutenção desse "nada", faz supor que há aí "alguma coisa" mais importante e fundamental (a conseguir ou a manter) do que a (não) satisfação da necessidade. Lacan costumava dizer, por isso, que a anoréctica come nada.

Mas, para além dos aspectos clínico (como tratar o desejo e o gozo em presença) e ético (são postasem causa todas considerações "utilitaristas" do bem-estar), a anorexia coloca-nos ainda um interessante problema, digamos, "cultural". Na verdade, ao mesmo tempo que a cultura parece estar a sofrer um efeito de feminização cada vez mais acentuado (não só ao nível dos comportamentos, mas também dos discursos), a anoréctica recusa precisamente a feminização do corpo. Todos os traços (seios, ancas, nádegas...) e ocorrências (menstruação) que lembram que a menina está a devir mulher são progressivamente rasurados.

Num outro campo cultural, os dos criadores de moda, assiste-se também a uma certa rasura, desta vez em relação aos traços distintivos dos sexos, tornado-os cada mais indistintos, homogéneos, a-sexuados.

Não haverá uma certa ligação (não digo no sentido em que um seria o culpado do outro, como muitas vezes é sugerido) entre estes dois fenómenos: um deles recusando a diferença sexual e o outro a feminilidade?

Talvez seja preciso voltar a ler Freud!

24.11.06

Uma certa psicanálise...


"O número 3/4 de Afreudite, já disponível em http://afreudite.ulusofona.pt/, apresenta o trabalho de investigação efectuado, entre 2003 e 2006, pela Linha de Acção Psicanálise da Unidade de Estudo e Investigação em Ciência Tecnologia e Sociedade, da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Os elementos desta Linha de Acção, quase todos membros da Antena do Campo Freudiano, desenvolveram as suas actividades de investigação em três direcções contemplando avaliações quantitativas e qualitativas: 1) a elaboração e aplicação de um Questionário sócio-demográfico para estudo da representação social da Psicanálise em Portugal; 2) uma recolha históricobibliográfica das edições portuguesas de textos de Psicanálise e afins; 3) e a recensão crítica de algumas dessas obras. A natureza empírica do referido inquérito levou a um debate mais vasto sobre a crença na objectividade do método. Através da discussão do Questionário é uma certa «Psicanálise» que é também colocada em questão. O restante deste número da Revista Lusófona de Psicanálise Pura e Aplicada é consagrado ao que de melhor se disse nas Jornadas de 2006 do Centro de Estudos de Psicanálise. Para além do tema geral, «A Paternidade em Crise», o leitor poderá igualmente inteirar-se de uma interpretação inédita da obra de José Saramago. Esta apresentação da investigação «lacaniana» em Portugal termina com o relatório do perito internacional que se deslocou a Lisboa para avaliar o trabalho da Linha de Acção e do Centro de Estudos de Psicanálise, o Vice-Presidente da Universidade de Rennes II, Professor Doutor Alain Abelhauser"

22.11.06

Mal-dita cocaína


Passados que são 150 anos sobre o seu nascimento, um pouco por toda a parte - e também em Portugal - o nome do criador da psicanálise, Sigmund Freud, continua a sucitar interesse, se bem que nem sempre pelas melhores razões. Um dos casos mais recentes é o da revista VIP (nº 488, de 22 a 28/11/2006).


É "sintomático" que a história descambe facilmente para a "anedota", o facto curioso, a piada (de bom ou mau gosto), o mito. Seria Freud um tarado sexual? Um viciado em cocaína?... Eis as perguntas que são colocadas, de forma recorrente e quase exclusiva, sobre o fundador da psicanálise. Tudo o mais é relegado para segundo ou terceiro plano, quando não é simplesmente esquecido.


Compreende-se, de alguma forma, que assim seja, na época de mediatização generalizada em que vivemos. Que importa às audiências, às massas, ao leitor anónimo a verdade (mesmo se Freud baseou a psicanálise no "amor da verdade") ou o real da coisa em questão. O que importa é que os mitos continuem a circular de mão em mão, de boca em boca, como moeda gasta, como diria Mallarmé.


Mas é por isso também que aqueles que são (raramente) chamados a dizer de sua justiça, possam esclarecer os equívocos, recolocando no seu devido lugar a página esquecida (ou a esquecer), sem a qual a história (da psicanálise) fica inevitável e irremediavelmente deturpada. Foi o caso, neste número da revista VIP, de José Martinho, representante em Portugal da Associação Mundial de Psicanálise, catedrático de Psicologia da Universidade Lusófona e presidente da Antena do Campo Freudiano.


Já agora: Freud era VIP (Very important person)? Sem dúvida, caso contrário, como teria sobrevivido 150 anos?

17.11.06

Um acontecimento






















Um acontecimento não é só um facto ou uma ocorrência, um acaso ou uma eventualidade que se realiza de modo mais ou menos inesperado; é também algo ou alguém digno de nota, extra-ordinário, que rema (ou rima?) contra a maré dos "acontecimentos".

É um facto que Slavoj ZizeK é psicanalista e filósofo (conjugação improvável, segundo muitos). Ocorreu igualmente que ele se tornou, nos últimos anos, uma "estrela" em vários firmamentos. É, enfim, verdade que o seu pensamento é digno de nota, em particular na forma como, agarrando o fio de Ariadne deixado por Lacan, Hegel e Marx, entre outros, ele tem vindo a fazer o seu próprio caminho de forma singular.

O que é inesperado - até certo ponto - é que ele esteja a ser traduzido para português!

A culpada do feito é a Relógio de Água, para bem dos nossos pecados.

Mesmo que a igreja Católica venha dizendo às almas que já não há Inferno (era uma fantasia), Slavoj Zizek, diz-nos, com Lacan, que há real (é o nosso sintoma) com que temos de haver-nos; por isso, Bem-vindos ao deserto do real!

Mesmo que o discurso reinante diga que vivemos num universo pós-ideológico, o multiculturalismo despolitizado é, segundo Zizek, a nova ideologia do capitalismo global; por isso, é necessária uma certa dose de intolerância (daí o elogio da mesma) para que se possa elaborar uma crítica da actual ordem das coisas.

Mesmo que outros digam que o sujeito e a subjectividade são temas defuntos, Slavoj Zizek apela a uma subjectividade por vir, reinventada, que tenha em conta as relações com o real.

É por estas e por outras que vale a pena de-gustar o acontecimento!